Cientistas afirmam ter desvendado grandes mistérios da gripe espanhola

De onde saiu o vírus que causou a pandemia de gripe de 1918? E sobretudo, por que foi tão mortífero? Novos resultados sugerem que a chave pode residir em ter ou não ter sido exposto, em criança, a um vírus semelhante.

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Hospital de campanha nos EUA durante a pandemia de gripe de 1918 Museu Nacional de Saúde e Medicina dos EUA

Em finais de 1918, a pandemia de gripe humana que se abateu sobre o mundo vitimou 50 milhões de pessoas (mais de 60 mil em Portugal). E até aqui, tanto as suas origens como a excepcional letalidade do vírus responsável pela chamada “gripe espanhola” constavam da lista dos grandes mistérios biomédicos do século XX. Mas um novo estudo, realizado nos EUA e publicado online segunda-feira ao fim da tarde, na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, traça uma árvore genealógica muito precisa do vírus em causa e fornece respostas concretas.

“Desde a grande pandemia de gripe de 1918 que a origem e a severidade do vírus são misteriosas – e também a razão por que matou tantos jovens adultos”, diz o líder do estudo, Michael Worobey da Universidade do Arizona, em comunicado. A gripe costuma ser mais grave nos bebés e nas pessoas idosas.

“Um dos grandes problemas é perceber quais foram os ingredientes na base dessa calamidade e se é expectável que o mesmo venha a novamente a acontecer – ou se, pelo contrário, ela foi provocada por uma situação particular”, acrescenta.

A gripe de 1918 era um vírus dito de tipo A e de subtipo H1N1, tal como o da recente pandemia de gripe de 2009. O subtipo é definido por duas proteínas do invólucro viral: a hemaglutinina, HA, e a neuraminidase, NA, dando-se aos vírus da gripe A nomes como H1N1 (que existe nos humanos e nos suínos), H2N3 ou H5N1 (o mais letal vírus da gripe das aves).

Para remontar até às origens do vírus de 1918, Worobey e os seus colegas analisaram o ADN deste vírus, do vírus H1N1 dos suínos e do vírus H1N1 sazonal humano (os dos surtos gripais de Inverno). Utilizaram um “relógio” molecular – uma técnica que permite, conhecendo a taxa de mutações que se acumulam no ADN ao longo do tempo, calcular quando e como o vírus surgiu.

Os geneticistas das populações também utilizam estes “relógios” para construir a árvore genealógica das espécies. Mas a ferramenta agora utilizada é “mais precisa”, escrevem os autores, porque “permite considerar diferentes taxas de mutação nas diversas espécies de hospedeiros” do vírus.

Segundo as teorias hoje mais aceites, das duas uma: ou o vírus H1N1 de 1918 surgiu directamente de um vírus das aves pouco tempo antes de 1918, ou foi o resultado de uma troca de genes entre vírus suínos e humanos que já circulavam há décadas nas respectivas espécies.

Mas não foi isso que a equipa de Worobley descobriu. A análise permitiu concluir que, embora o vírus da gripe espanhola tenha de facto “nascido” pouco antes de 1918, surgiu quando um vírus da gripe humana – que já naquela altura, circulava nos humanos há dez a 15 anos – “capturou” um gene de gripe aviária. Não foi um vírus das aves que “saltou” inteirinho das aves para os humanos nem resultou de uma mistura com um vírus suíno.

Esta nova visão permite perceber o insólito padrão etário de mortalidade da gripe espanhola, explicam os cientistas. “Parece um pequeno e modesto pormenor, mas pode ser a peça que faltava no puzzle”, diz Worobey. “Com base neste indício, muitos outros dados sobre a gripe de 1918 encaixam uns nos outros.”

Combinados por exemplo com o que se sabe dos subtipos de vírus em circulação na viragem do século XX, os resultados sugerem uma explicação para a elevada mortalidade da gripe de 1918 entre os adultos com 20 a 40 anos: ela poderá ser devida ao facto de essas pessoas nunca terem sido expostas, até à pandemia, a um vírus semelhante ao da gripe espanhola, mas sim a um vírus H3N8, totalmente diferente, presente de 1889 a 1900.

Por isso, quem nascera entre 1889 e 1900 pode não ter tido qualquer imunidade contra o vírus de 1918, enquanto quem nascera antes ou depois estava mais protegido contra esse vírus porque já se tinha cruzado com outro vírus da gripe – portador, tal como o da gripe espanhola, da proteína H1 (ou N1) .

Os autores concluem que através de estratégias de imunização que simulem a imunidade adquirida na sequência de uma exposição precoce a diversos vírus da gripe, talvez seja possível reduzir a mortalidade não só da gripe sazonal, mas também a dos novos vírus da gripe que vierem a surgir.
 

   

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