Bolseiros: sobre a recomendação do provedor de Justiça

Se a investigação não é uma necessidade permanente de uma unidade de investigação, cabe perguntar, então, o que o é?

O provedor de Justiça deu razão à denúncia da Associação de Bolseiros de Investigação Científica (ABIC) sobre o recurso abusivo, no Sistema Científico e Tecnológico Nacional (STCN,) a bolsas de investigação, que são frequentemente usadas para suprir tarefas de gestão das organizações tão diversas entre si que apenas têm em comum o facto de não constituírem atividades de investigação científica. Fez, por isso, uma recomendação ao Ministério da Ciência, Tecnologia e do Ensino Superior, no sentido de aperfeiçoar o Estatuto do Bolseiro de Investigação (EBI), de modo a proteger os investigadores dos abusos das instituições e a evitar a proliferação de bolsas em atividades que presumem a celebração de um contrato de trabalho.

Esta é uma conquista de louvar. Principalmente porque é mais um dos vários raios de luz que recentemente incidem sobre este obscuro modelo de trabalho informal em que se faz a ciência em Portugal. É uma recomendação crítica, identifica lógicas e atores que estão na génese dos problemas do trabalho na ciência, mas a sua reflexão não tem o alcance que poderia ter, e cabe à ABIC, em nome dos bolseiros de investigação, mostrá-lo.

A ABIC pergunta por que razão são tomadas como necessidades permanentes do SCTN apenas as atividades que não são a atividade principal (ou, na tão apreciada gíria da gestão, o core business) das instituições que compõem o SCTN, que é precisamente a produção científica. Ao tomar como necessidades permanentes apenas aquelas que visam a manutenção administrativa das instituições, o provedor de Justiça está a reiterar que os investigadores não são necessidades permanentes das universidades e centros de investigação. E, ao fazê-lo, reconhece, ainda que inadvertidamente, que o recurso a bolsas é legítimo para a prática da investigação e de produção da ciência e está, por isso, a compactuar com um regime jurídico profundamente injusto, que legaliza o trabalho informal no SCTN, e que é o Estatuto do Bolseiro de Investigação. Ora, se a investigação não é uma necessidade permanente de uma unidade de investigação, cabe perguntar, então, o que o é?

A ABIC não pode, também, aceitar acriticamente uma proposta de aperfeiçoamento do EBI. Vamos melhorar um estatuto que permite, no seio do Estado e fora deste, a manutenção de um modelo de trabalho totalmente informal, em que os seus trabalhadores (entenda-se, investigadores bolseiros) passam 20 e mais anos a trabalhar completamente à margem da legislação laboral? Aperfeiçoar em que sentido? De afinar a sua informalidade prática? De restringir o EBI apenas aos investigadores, para que só e exclusivamente estes se mantenham num regime de trabalho paralelo a todo e qualquer enquadramento regulador das relações laborais? Em que medida isso é favorável aos investigadores? E em que medida isso promoverá a justiça, especialmente a justiça laboral e social? Esta proposta, como se vê, tem na sua génese uma contradição insanável.

Se aceitamos a noção de que os investigadores são imprescindíveis às unidades de investigação e que, por essa via, só podem ser considerados como necessidades permanentes, então a recomendação funda-se numa leitura limitada daquilo que constitui a realidade do trabalho na ciência em Portugal e deveria, juntamente com a ABIC, recomendar (passando a redundância) a revogação do EBI e o reconhecimento do direito de todos os investigadores a uma formal, e digna, relação laboral. Repare-se que é o próprio EBI que expõe os motivos da sua revogação, dispondo, no n.º 5 do seu artigo 1.º, que “é proibido o recurso a bolseiros de investigação para satisfação de necessidades permanentes dos serviços”. Ora, se todos concordamos que os “serviços” de investigação científica têm como necessidade intrínseca e permanente investigadores científicos, então é o EBI, no seu texto, que afirma que estes não podem trabalhar com contratos de bolsa. Mais, o Estatuto do Bolseiro de Investigação, impondo um regime de exclusividade a um contrato de bolsa, nega o próprio direito ao trabalho, que está consagrado constitucionalmente. E sobre estas contradições a recomendação do provedor pouco ou nada refere, desconsiderando uma reflexão que é imprescindível para se reconhecer, de uma vez por todas, aos investigadores portugueses o direito ao trabalho e ao estatuto de trabalhadores. Sim, porque as novas medidas legislativas precisam desta reflexão para serem amadurecidas e alargarem o direito ao trabalho aos investigadores não doutorados, retomando níveis extintos da carreira de investigação que permitiriam aos investigadores, mais ou menos jovens, a devida integração profissional.

Reafirmamos, pois, que é de suma importância rejeitar a noção, tão difundida por alguns dos protagonistas das instituições do sistema científico nacional, de que a ciência se possa fazer sem investigadores. É como querer vencer o Mundial 2018 sem futebolistas, mas apenas com a equipa técnica da seleção nacional. Nem uns nem outros trabalhadores são menos importantes, e a ABIC nunca deixará de combater essa ideia de que há trabalhadores mais dignos do que outros na ciência portuguesa.

A autora escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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