Antepassados do hobbit já viviam há 700 mil anos na ilha das Flores

Novos fósseis encontrados em ilha indonésia revelam que já existiam ali pequenos humanos várias centenas de milhares de anos antes do homem das Flores. A descoberta rebate as hipóteses de que o tamanho deste humano se devia a doenças. Mas qual a origem desta espécie? E como encolheu naquela ilha?

Fotogaleria
Um dos seis dentes descobertos em Mata Menge, em 2014 Kinez Riza
Fotogaleria
Fragmento da mandíbula de um antepassado do Homo floresiensis descoberto em 2014 Kinez Riza
Fotogaleria
Local da escavação arqueológica em Mata Menge, na ilha das Flores, onde se encontraram os novos fósseis com 700 mil anos Gerrit van den Bergh/Universidade Wollogong
Fotogaleria
A região de Mata Menge, onde se fizeram dezenas de prospecções Gerrit van den Bergh/Universidade Wollogong
Fotogaleria
A gruta de Liang Bua, onde os primeiros vestígios do Homo floresiensis foram descobertos em 2003 GABINETE DO PROGRAMA DE DIGITALIZAÇÃO SMITHSONIAN/Equipa Liang Bua
Fotogaleria
Crânio do Homo floresiensis encontrado em 2003 na ilha das Flores Beawiharta/Reuters

São apenas sete fósseis, a parte direita de uma pequena mandíbula e seis dentes. Mas os vestígios, descobertos em 2014 na ilha das Flores, na Indonésia, mudam muito o que se sabe sobre o homem das Flores, o famoso hobbit, cujas primeiras ossadas foram encontradas em Agosto de 2003, na gruta de Liang Bua, naquela ilha. Os novos fósseis têm cerca de 700 mil anos, sendo assim 600 mil anos mais antigos do que os vestígios conhecidos até agora do pequeno Homo floresiensis, mas mostram que ali já vivia uma pequena espécie humana, segundo dois artigos publicados nesta quinta-feira na revista científica Nature

Em 2003, as datações dos fósseis fizeram estremecer a comunidade científica. Segundo os cálculos da altura, o homem das Flores teria vivido entre há 95 mil e 12 mil anos. Esta última idade era um recorde para outros humanos que não o Homo sapiens, a nossa própria espécie. Em comparação, o neandertal viveu na Europa até há cerca de 30.000 anos. Mais: esta data significa que o hobbit teria de ter convivido connosco, uma vez que há vestígios de humanos modernos no Sudeste asiático com 50 mil anos.

Com 1,06 metros de altura e apenas 426 centímetros cúbicos de volume cerebral (cerca de um terço do volume cerebral dos humanos modernos), o pequeno tamanho do Homo floresiensis esteve na origem da alcunha hobbit, personagens de estatura baixa das obras O Hobbit e da trilogia O Senhor dos Anéis, escritas pelo britânico J.R.R. Tolkien. Nunca se tinha visto um humano tão pequeno. O Homo habilis, o primeiro representante do nosso género, que viveu entre há 2,8 e 1,5 milhões de anos em África, tinha em média 1,2 metros de altura e 615 centímetros cúbicos de volume de cérebro.

Foto
Ossos do esqueleto do Homo floresiensis encontrados em 2003 na gruta de Liang Bua, na ilha das Flores Beawiharta/Reuters

Apesar de se conhecerem inúmeros casos de espécies animais associadas a ambientes insulares que são mais pequenas do que os seus parentes continentes (há registos fósseis de hipopótamos anões na Sicília, no Chipre e em Creta), rapidamente surgiu uma alternativa para explicar o homem das Flores. Alguns cientistas defenderam que os pequenos indivíduos não pertenciam a uma nova espécie mas eram humanos modernos com nanismo, com síndrome de Down ou microcefalia.

A discussão manteve-se ao longo dos anos, reacendendo-se a cada novo artigo científico sobre o homem das Flores. O último capítulo desta saga arqueológica surgiu em Março deste ano, quando novas datações dos depósitos da gruta onde se encontravam os fósseis de 2003 revelaram que, afinal, os vestígios eram mais antigos do que se pensava: tinham entre 60 mil e 100 mil anos.

A nova janela temporal dificulta bastante a hipótese de que aqueles indivíduos eram humanos modernos com uma deficiência. Aliás, obriga a questionar se o homem das Flores alguma vez esteve em contacto com o Homo sapiens. Mas não ajuda a responder a questões sobre a origem da espécie nem há quanto tempo estava ali e como é que diminuiu de tamanho. Felizmente, os tesouros arqueológicos da ilha das Flores ainda não se tinham esgotado.

Dezenas de prospecções

Os novos fósseis foram descobertos em Mata Menge, um local arqueológico no centro da ilha, a 74 quilómetros a leste da gruta de Liang Bua. A região foi em tempos o leito de um rio. Há 20 anos que Gerrit van den Bergh, da Universidade de Wollongong, da Nova Gales do Sul, Austrália, estudava esta região, fazendo dezenas de prospecções arqueológicas em diferentes locais e escavando estratos de sedimentos cuja idade ia dos 500 mil anos até a 1,8 milhões de anos.

Nos últimos anos, paleontólogo esteve a trabalhar com Mike Morwood, da mesma universidade e líder da equipa australiana e indonésia que descobriu o hobbit em 2003. Os dois paleontólogos andavam à procura de outros vestígios do Homo floresiensis naquela área. Em 2013, quando Mike Morwood morreu, a equipa deslocou-se para uma região mais alta do terreno. E um ano depois os sete fósseis foram encontrados nesse local.

Dois dos seis dentes pertencem a crianças. O fragmento do osso da mandíbula é de um adulto. Os sedimentos onde foram encontrados têm pelo menos 700 mil anos. “Estes fósseis constituem os mais antigos vestígios de hominíneos nas Flores”, segundo o artigo principal sobre a descoberta.

A mandíbula encontrada agora é um pouco mais pequena do que a do crânio do hobbit. E os dentes, além do tamanho, têm outras semelhanças com os dentes do homem das Flores. Este conjunto de informações leva a crer que, se os novos vestígios não pertencem a um indivíduo da mesma espécie, são pelo menos de um antepassado do Homo florensiensis.

Foto
Um dos seis dentes descobertos em 2014, em Mata Menge, na ilha das Flores Kinez Riza

Há 700 mil anos, este antepassado já tinha uma dimensão muito mais pequena do que o Homo erectus, a espécie humana que na altura dominava a Ásia, a Europa e a África. Os fósseis de Homo erectus que foram descobertos nos séculos XIX e XX na ilha de Java (Indonésia) pertenciam a indivíduos com 1,65 metros e 860 centímetros cúbicos de capacidade craniana. Vivia ali há aproximadamente um milhão de anos. Cerca de 300.000 anos depois, na ilha das Flores, outra espécie já tinha emergido.

“Todos os fósseis são indiscutivelmente de hominíneos e, incrivelmente, são parecidos com os do Homo floresiensis", diz Yousuke Kaifu, que faz parte da equipa e pertence ao Museu Nacional da Ciência e da Natureza de Tóquio, no Japão, citado num comunicado da Universidade de Wollongong. “O que é verdadeiramente inesperado é que o tamanho de os fósseis descobertos indica que o Homo floresiensis já era pequeno há pelo menos 700 mil anos.”

Para Gerrit van den Bergh, os novos fósseis confirmam a existência do homem das Flores como uma espécie autónoma. “Esta descoberta tem implicações importantes na compreensão da dispersão inicial e da evolução humana naquela região e cala de uma vez por todas todos os cépticos que acreditam que o Homo floresiensis era meramente um humano moderno doente”, diz, citado no mesmo comunicado. Isto porque a nossa espécie só surgiria muito depois, há cerca de 200 mil anos, em África.

Para lá da evolução humana

Mas a origem desta espécie assim como a sua evolução aparentemente rápida permanecem misteriosas. Há duas hipóteses sobre os antepassados do Homo floresiensis. Uma, apoiada pela equipa de Gerrit van den Bergh, diz que o hobbit descende do Homo erectus, os humanos que saíram de África pela primeira vez e conquistaram os continentes adjacentes. Só que há a dúvida sobre como é que estes humanos, em apenas 300 mil anos, se tornaram tão pequenos.

Outra hipótese propõe ter havido uma migração de África há dois milhões de anos, levada a cabo por um grupo de Homo habilis ou até por uma espécie de australopiteco, que depois evoluiu na ilha das Flores, dando origem ao hobbit. Esta proposta é ainda mais controversa, já que não existe qualquer vestígio arqueológico desta primeira migração. Todos os fósseis de Homo habilis e das espécies de australopitecos foram encontrados em África.

“Para já, parece que todas as explicações possíveis estão fora da zona de conforto dos cenários clássicos da evolução humana”, sustenta a paleoantropóloga Aida Gómez Robles, da Universidade de Washington (EUA), que não esteve envolvida no estudo e publica um comentário na Nature que acompanha a descoberta.

Há outro facto que torna tudo mais complexo. Já foram descobertos nas Flores artefactos humanos de pedra com um milhão de anos. Isto indica que 300 mil anos antes dos fósseis agora desenterrados já existiam populações humanas naquela ilha.

“É concebível que o corpo do Homo floresiensis evoluiu para proporções pequenas durante os primeiros 300 mil anos nas Flores e, por isso, é uma linhagem anã que, em última instância, deriva do Homo erectus”, propõe Gerrit van den Bergh. “Também é possível que esta linhagem tenha começado ainda antes da chegada do primeiro hominíneo às Flores, o que implica que a especiação ocorreu de ilha em ilha, entre a Ásia e as Flores, como as Celebes (Indonésia).”

Aida Gómez Robles lembra que a diminuição de tamanho associada à evolução nas ilhas é muito observada noutros animais. E defende que pode ainda ter acontecido o chamado “efeito de fundação” – quando uma nova população nasce a partir de um número pequeno de indivíduos de uma população original, com características que não representam toda a variabilidade dessa população original. Por exemplo, o grupo humano que colonizou as Flores poderia ser, já por si, mais pequeno do que a população de Homo erectus em geral.

Foto
Ilustração do Homo floresiensis Cortesia de Peter Schouten/National Geographic Society

Mas tanto o nanismo como o efeito de fundação não costumam ser associados à evolução humana, diz a paleoantropóloga, argumentando que os fenómenos evolutivos observados em animais poderão ajudar a interpretar as descobertas surpreendentes provenientes da ilha das Flores: “Qualquer que seja a origem do Homo floresiensis, estaremos muito mais perto de uma resposta se olharmos para lá dos hominíneos na procura de explicações.”

Sugerir correcção
Ler 16 comentários