Afinal, como começou o incêndio?

A origem do incêndio de Pedrógão Grande, que ontem foi dominado, continua a suscitar dúvidas. Enquanto já se fala numa eventual “mão criminosa”, a PJ insiste em “causas naturais” e o IPMA, chamado a responder ao primeiro-ministro, está analisar cada raio que caiu na região na tarde de sábado.

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Incêndio de Pedrógão Grande Adriano Miranda

O Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) emitiu um aviso meteorológico que apontava para um risco muito elevado de incêndio florestal na zona de Pedrógão Grande vários dias antes do fogo trágico que começou no sábado, causando 64 mortes e 204 feridos. O alerta foi lançado por causa das altas temperaturas e baixos níveis de humidade previstos para esta região, sem que fosse feita uma referência ao risco de trovada que também tinha sido previsto pelo IPMA e por outros especialistas que monitorizam o tempo no território. Lidos os dados provisórios divulgados na segunda-feira, constata-se que naquela região caíram quase 300 descargas eléctricas. O IPMA vai agora analisar cada um desses raios.

O primeiro-ministro, António Costa, perguntou na segunda-feira à noite ao IPMA se houve condições meteorológicas adversas e quais as condições geofísicas que terão condicionado a propagação do incêndio em Pedrógão Grande. O IPMA já respondeu, dizendo que as previsões meteorológicas feitas batem certo com os valores depois verificados de temperatura e humidade (33,3 graus Celsius e uma humidade de 20%). “O sistema de previsão meteorológico para as condições de superfície, funcionou de forma correcta, dentro de margens de erro expectáveis”, refere Miguel Miranda, presidente do IPMA, na carta enviada a António Costa e onde acrescenta que “os níveis de avisos emitidos estavam de acordo com as regras fixadas entre o IPMA e a ANPC [Autoridade Nacional de Protecção Civil]”.

A trovoada também fazia parte das previsões para o elevado risco de incêndio mas não foi referida no aviso meteorológico feito para esta e outras regiões do país. No sábado, os sensores de descargas eléctricas do IPMA em vários pontos do país registaram quase 300 descargas na região de Pedrógão Grande entre as 14h30 e as 16h, segundo os dados provisórios. O alerta para o incêndio foi às 14h43.

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No esclarecimento ao primeiro-ministro, o IPMA também levanta a hipótese – em que agora trabalha e que constará de um relatório que deverá estar pronto na sexta-feira – de que ocorreu um fenómeno meteorológico chamado downburst já durante o incêndio e que pode ter acelerado a sua propagação. Trata-se de uma massa de ar descendente, que chega até ao solo e se espalha de forma radial, causando ventos fortes. Uma vez chegada ao chão, essa descarga de ar dispara para todas as direcções. Parece um tornado mas não é.

A ter acontecido um downburst durante o incêndio, pode ter sido importante para o que aconteceu na estrada em que ficaram aprisionados vários carros e em que morreram 47 das 64 vítimas do incêndio, a EN 236-1, que não foi cortada ao trânsito.

Mas além do downburst, houve as descargas eléctricas registadas pelos aparelhos meteorológicos e que parecem ter sido decisivas neste incêndio. Esta parte do trabalho do IPMA para o relatório apoia-se na análise dos dados do radar meteorológico de Arouca (que apanha a região de Pedrógão Grande) e dos quatro sensores de descargas eléctricas, localizados em Braga, Alverca, Castelo Branco e Olhão. O trabalho agora é mais minucioso: passa por ver que nuvens existiam na região que geraram as quase 300 descargas eléctricas, quantas dessas descargas ficam dentro das nuvens e quantas realmente atingem o solo. Mais: em que sítios estes relâmpagos bateram no chão e a que horas.

Depois, determinar onde começou exactamente o incêndio – qual foi a árvore, se é que foi um raio que atingiu uma árvore – é já o trabalho para a Polícia Judiciária (PJ).

Nuvens como tufos de algodão

“Conseguimos prever a ocorrência de trovoadas, mas nunca sabemos quando essa trovoada vai acontecer e em que local exacto ela vai cair. Isso é impossível de prever”, explica Alfredo Rocha, investigador do Departamento de Física na Universidade de Aveiro (UA) e especialista em meteorologia. Tal como o IPMA, o sistema de monitorização do tempo da responsabilidade UA também tinha feito previsões de trovoada para várias regiões do país para o passado fim-de-semana. “Acompanhámos esta situação e acompanhámos as observações feitas pelo IPMA das descargas que, de facto, ocorreram”, refere o investigador, que conclui: “É muito frequente em todo o mundo ver descargas eléctricas a provocar fogos florestais. O que não é normal é a consequência trágica que este teve.” Ter sido uma descarga eléctrica de uma trovoada seca a desencadear este incêndio “é muito plausível”, assegura.

O processo é simples: as trovoadas (secas ou húmidas) formam-se naquelas nuvens que parecem grandes tufos de algodão com uma enorme extensão vertical. Estas nuvens produzem chuva mas, por vezes, têm por baixo uma camada de ar muito seco que faz com que a chuva se evapore e, por isso, a água não chega ao chão. Quanto às descargas eléctricas que estas nuvens fabricam, há umas que apenas viajam entre dois pontos da nuvem (de um lado para o outros) e outras que chegam ao chão.

Logo no início da manhã de domingo, menos de 24 horas após o primeiro alerta para o incêndio, o director nacional da PJ, Almeida Rodrigues, anunciou que as autoridades policiais já tinham conseguido “determinar a origem do incêndio” e que tudo apontava “muito claramente para causas naturais”, tendo sido encontrada “a árvore que foi atingida por um raio”.

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Incêndio de Pedrógão Grande Adriano Miranda

Esta terça-feira, em declarações ao PÚBLICO e já depois de Jaime Marta Soares, presidente da Liga dos Bombeiros, denunciar que o incêndio poderá ter tido uma origem criminosa, fonte da PJ ligada a esta investigação confirmava que o que foi dito por Almeida Rodrigues no domingo se mantém. Salvaguardando que a investigação não chegou ao fim, a mesma fonte garantiu que os indícios e provas observados no local levaram os peritos da polícia científica a concluir que “a causa provável, com elevado grau de probabilidade, do início deste incêndio foi uma descarga eléctrica”. “Sabemos onde começou e foram analisados os vestígios no local que mostram como aconteceu”, acrescentou, assegurando que um evento deste tipo deixa marcas que são facilmente (e rapidamente) identificadas por especialistas.

Um evento deste tipo deixa um rasto. Numa árvore, por exemplo, abre-lhe a casca e no chão à volta deixa a terra recozida, mais arenosa, com um brilho diferente, quase vitrificada.

Duas perguntas e um aviso

No mesmo despacho em que questionava o IPMA sobre as condições meteorológicas na tarde de 17 de Junho, o primeiro-ministro fazia mais duas perguntas. Para uma delas ainda não há resposta: “Confirma-se que houve uma interrupção do funcionamento da rede SIRESP, porquê, durante quanto tempo, se não funcionaram as suas próprias redundâncias e que impacto teve no planeamento, comando e execução das operações, como se estabeleceram ligações alternativas?”, perguntou à ANPC.

Para a outra, dirigida ao tenente-general Manuel Silva Couto, comandante geral da GNR, António Costa obteve resposta em menos de 24 horas. Na noite de terça-feira, entrevistado na TVI, o chefe do Governo referiu que a GNR não deu ordem para encerrar a EN 236-1. “Que eu tenha conhecimento, não há nenhuma instrução específica para o encerramento daquela via, conforme aqui diz a GNR”, disse António Costa, referindo-se à resposta que entretanto recebeu.

“Não foi dada essa instrução pelo comando da Guarda, pelos militares da Guarda no local e, provavelmente, também não pela ANPC”, acrescentou. O primeiro-ministro foi informado de que “o fogo terá atingido esta estrada de forma totalmente inesperada, inusitada e assustadoramente repentina, surpreendendo todos, desde as vítimas aos agentes de protecção civil, nos quais se incluem os militares da GNR destacados para o local”, o que corresponde “à descrição do dramatismo e da rapidez com que tudo aconteceu naqueles 400 metros daquela estrada”.

A versão dada pelo primeiro-ministro, com base nas respostas da GNR, não é coincidente com o que disse Jorge Gomes à TSF, nesse mesmo dia. “Uma das primeiras perguntas que fiz à Guarda Republicana foi se a via estava fechada. A GNR informou-me que sim, que a via estava fechada”, disse o secretário de Estado da Administração Interna.

Apesar de algumas respostas começarem a surgir, há ainda muitas dúvidas que só serão esclarecidas com uma análise detalhada do que aconteceu no último sábado. E haverá lições a retirar de tudo o que se passou. Para já, fica apenas um aviso deixado pelo investigador Alfredo Rocha para o próximo fim-de-semana, 24 e 25 de Junho: “Nas nossas previsões, sábado à tarde e durante todo o dia de domingo há uma probabilidade elevada da ocorrência de tempestades que produzam trovoadas no Sul e Centro Interior do país.” As trovoadas podem voltar mas parece impossível para todos que uma tragédia assim se repita.

Com S.S. e N.F. 

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