Adeus, Cassini: “Os livros de História não seriam os mesmos sem ela”

Durante 13 anos, a sonda da NASA recolheu dados na órbita de Saturno e enviou imagens inesquecíveis dos seus anéis e luas. Nesta sexta-feira, a Terra despede-se da Cassini”. É o fim de uma missão que é considerada um dos maiores sucessos da exploração espacial.

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JPL/NASA

A aventura da sonda Cassini chega ao fim esta sexta-feira. Depois de duas décadas em missão, vai ao encontro do seu objecto de estudo: o planeta Saturno. Esta despedida vai ser como um canto do cisne, em que a sonda vai dar o mergulho em direcção ao planeta gigante e incendiar-se. Pelo caminho, percorreu cerca de 7800 milhões de quilómetros, completou 293 órbitas, tirou mais de 453.000 imagens, descobriu seis novas luas de Saturno, recolheu 635 gigabytes de dados científicos e foram publicados quase quatro mil artigos científicos sobre a Cassini. Mas este não é um adeus amargurado, ainda muito se vai falar de Cassini e do seu encontro com o sistema de Saturno. 

A primeira pessoa a ver os anéis de Saturno foi o astrónomo italiano Galileu Galilei (1564-1642), em 1610. Naquela altura e com um telescópio ainda muito primitivo viu algo que se assemelhava a orelhas. O astrónomo nem sequer imaginava que séculos mais tarde fosse possível visitar este planeta orelhudo. Foi com esta ambição que a 15 de Outubro de 1997 a sonda Cassini-Huygens partiu da base espacial de Cabo Canaveral, na Florida, nos Estados Unidos, em direcção a Saturno.

Esta é uma missão da agência espacial norte-americana (NASA), da Agência Espacial Europeia (ESA) e da Agência Espacial Italiana. A sonda Cassini pertence à NASA e tem o nome do astrónomo italiano Giovanni Cassini (1625-1712), que descobriu quatro luas de Saturno (Japeto, Reia, Tétis e Dione) e observou uma separação entre anéis do planeta, conhecida como “Divisão de Cassini”. Já o módulo de aterragem Huygens, que foi às cavalitas da Cassini, até 2004, pertence à ESA e tem o nome do astrónomo holandês Christiaan Huygens (1629-1695), que descobriu a lua Titã. A sonda mede cerca de sete metros de altura e 13 de largura. E se no início pesava cerca de seis mil quilos, no final da missão emagreceu e ficou com cerca de dois mil quilos depois de perder a Huygens e muito combustível.

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A lua Titã passa à frente de Saturno JPL/NASA

Depois de uma viagem de quase sete anos pelo espaço, percorrendo cerca de 3500 milhões de quilómetros, e de ter feito várias passagens perto de outros planetas para utilizar a sua força gravítica e acelerar – em Vénus (1998), na Terra (1999) e em Júpiter (2000) –, a 1 de Julho de 2004 chegou à órbita de Saturno. Na altura, esperava-se que a Cassini-Huygens viesse a desvendar alguns mistérios, como a existência de um poderoso campo magnético em Saturno. Depois deste momento de sucesso da Cassini, esperava-se o mesmo para o desempenho da Huygens uns meses depois. “Esta noite foi dos americanos. Deixaram-nos o segundo acto e teremos de fazê-lo bem”, dizia nesse dia de Julho David Southwood, director científico da ESA na altura.

O segundo acto foi cumprido logo uns meses depois. A Cassini levou a Huygens às costas até Titã e a 24 de Dezembro libertou-a, para que depois se embrenhasse nas brumas da lua. A 14 de Janeiro de 2005 aterrou então em Titã, sobrevivendo à superfície 72 minutos. Jean-Jacques Dordain, director-geral da ESA de 2003 a 2015, considerou o feito um “sucesso científico”. No dia seguinte, chegaram as primeiras imagens da superfície desta lua. Hoje, Pedro Mota Machado, astrofísico do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço da Universidade de Lisboa e que trabalha com dados da Cassini, considera que esta foi a “primeira grande simbiose entre a NASA e a ESA”, disse ao PÚBLICO.

Dois mundos gelados

Durante a viagem da Cassini foram sempre sendo publicados artigos científicos, nomeadamente sobre duas luas de Saturno: Titã e Encelado. “São duas luas extremamente importantes em termos de astrobiologia. E são luas geladas”, diz-nos Pedro Machado.

Os dados recolhidos pela Huygens durante a travessia pelas brumas de Titã e as observações da Cassini durante voos aproximados a esta lua permitiram saber mais sobre os seus processos atmosféricos e as suas estações, assim como a morfologia da sua superfície e estrutura interior. Sabe-se agora que Titã tem uma atmosfera bastante densa e é composta por azoto, tal como a Terra, e por etano e metano, dois hidrocarbonetos. Depois das chuvas destes hidrocarbonetos, formam-se os lagos e mares quase só compostos por hidrocarboneto (etano e metano). “Envolta por uma atmosfera densa dominada por azoto e parcialmente coberta por lagos e rios, Titã tem uma meteorologia e um ciclo que possui algumas semelhanças interessantes com [o ciclo hidrológico da] Terra. No entanto, há diferenças importantes: a componente-chave não é a água, como no nosso planeta, mas o metano e a temperatura é muito baixa – cerca de 180 graus Celsius negativos à superfície”, refere um comunicado da ESA.

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Imagem artística de Titã JPL/NASA

Já em Encelado foi detectada uma pluma de vapor de água e moléculas orgânicas, que são lançadas para o espaço através de fracturas existentes no Pólo Sul da lua. Isto sugere que há um oceano subterrâneo de água líquida. Outros dados mostram que há gás de hidrogénio molecular nesta pluma. Suspeita-se assim que a rocha está a reagir com a água quente do oceano subterrâneo desta lua.

“A sonda Cassini trouxe um enfoque a estes mundos gelados como objectivos de primeira linha em termos científicos”, considera Pedro Machado. O astrofísico destaca ainda a observação do sistema de anéis de Saturno, sobretudo na fase final da missão, quando a sonda estava cada vez mais perto do planeta. Assim, foi possível saber mais sobre a sua espessura e constituição.

Final com 22 mergulhos

O Grande Final da missão Cassini, como a NASA o denominou, está marcado desde 2010. A sonda, que está a ficar sem combustível, começou a contagem decrescente em Abril deste ano, quando iniciou os 22 mergulhos até ao mergulho final. “A Cassini mergulha numa órbita elíptica muito excêntrica, ou seja, uma elipse muito alongada entre os anéis e o planeta”, explica o astrofísico. Estes mergulhos muito próximos do planeta vão servir para entender as camadas mais profundas de Saturno, assim como perceber com maior detalhe o seu campo magnético, que “é fortíssimo em Saturno”, refere Pedro Machado.

A Cassini fez o último mergulho de aproximação a Titã esta semana, o que lhe deu a assistência gravitacional necessária para conseguir chegar a Saturno, evitando qualquer impacto pelo caminho. Esta sexta-feira, pelas 11h31 (em Portugal), a Cassini vai fazer uma “queda controlada” sobre o planeta e deixará de emitir sinais. “O que vai acontecer é que ao entrar nas camadas, devido à fricção, vai ser incinerada e ter assim o seu funeral”, descreve o astrofísico. “Finalmente vai fazer parte do seu objectivo: Saturno. E fazer parte dele até ao fim dos tempos.” Durante este mergulho não será tirada nenhuma imagem. As últimas são de quinta-feira.

Todo o processo é realizado de acordo com as normas de protecção planetária, para que não contamine as luas e não se torne lixo espacial. Também a sonda Galileu tinha feito algo do género, ao mergulhar na atmosfera densa de Júpiter em Setembro de 2003, terminando assim a sua missão de oito anos na órbita desse planeta.

Os seus últimos sinais chegarão à Terra 83 minutos depois. “O sinal final do veículo espacial será como um eco”, diz Earl Maize, responsável pela missão do Laboratório de Propulsão a Jacto da NASA, em Pasadena, na Califórnia. “Mesmo sabendo que a Cassini já conheceu o seu destino, em Saturno, a missão não está verdadeiramente terminada na Terra porque durante esse período ainda estamos a receber o sinal.”

Técnica portuguesa com dados da Cassini

“Vai ser como o canto do cisne. Vai ser algo belo e muito interessante em termos científicos”, antecipa Pedro Machado. O astrofísico português espera com ansiedade os resultados destes últimos dias. Juntamente com o seu aluno de doutoramento em Astrofísica, Miguel Silva, e o aluno de mestrado, José Silva, o grupo está a desenvolver duas técnicas para poder medir a velocidade dos ventos e estudar a dinâmica da atmosfera de Saturno e de Júpiter. Uma com os dados do Very Large Telescope (VLT), o telescópio do Observatório Europeu do Sul (ESO), situado no monte Paranal, no Norte do Chile, e outra com os dados da Cassini. “ São duas técnicas separadas que se complementam”, salienta Pedro Machado.

A equipa vai apresentar pela primeira vez os resultados no Congresso Europeu de Ciência Planetária, na próxima semana, na Letónia. “O que é engraçado é que vamos apresentar dados do princípio da missão [quando a sonda chegou à órbita de Saturno em 2004] e do fim da missão”, indica Pedro Machado. “E ainda por cima com um timing incrível.”

Esta missão custou cerca de 3300 milhões de euros, segundo a NASA. E o astrofísico classifica-a como “um dos maiores sucessos da história da humanidade em termos de missões espaciais.” Di-lo pela quantidade de dados recolhidos e pelas descobertas e colaborações que possibilitou. “Os livros de História não seriam os mesmos sem a missão Cassini”, salienta. E ainda avisa que tem uma colaboração com o Observatório Astronómico de Paris para estudar a atmosfera de Titã, em que vão usar dados da Cassini e do VLT.

Além disso, e apesar de a missão terminar agora, Pedro Machado lembra que existem muitos dados por analisar e estima que esse trabalho dure mais de uma década. Antes da Cassini, as sondas Voyager 1 e 2 da NASA já tinham passado por Saturno, nos anos 80, mas mais longe. Mesmo assim aumentaram o número de anéis conhecidos para seis, o que abriu o apetite para uma investigação mais aprofundada do planeta. “Já tinham dado algum contributo mas nem de perto nem de longe com a riqueza dos resultados sólidos em termos científicos da Cassini.”

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Saturno e os seu anéis, em primeiro plano. E ao longe, a Terra, assinalada com uma seta JPL/NASA

Pedro Machado até reconhece que há já uma ligação afectiva a esta sonda: “Se calhar vai haver uma lagrimazinha no olho [na despedida]. Foram muitos anos de proximidade à missão.” Despedimo-nos assim de quem nos contou as histórias de outras paragens, como dizia o cientista Carl Sagan, no livro Cosmos, a propósito das Voyager. Ficamos com um vislumbre de um planeta vizinho e o segundo maior do sistema solar num Universo tão vasto e que aguarda a nossa curiosidade e capacidade para continuar a ser desvendado.

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