Acordou os filhos para ver os homens-pássaros

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AFP Photo/NASA

As três crianças acordaram estremunhadas e passaram o momento aos saltos no sofá da sala, a mesma onde 40 anos depois o físico e divulgador científico António Manuel Baptista recorda os primeiros passos de Armstrong e Aldrin como uma tendência natural da Humanidade para ser heróica. Texto originalmente publicado na revista Pública a 19-07-2009

Nunca houve espanto, ou pelo menos nunca houve incredulidade. Já se conheciam as leis de Newton há quase três séculos, o foguetão tinha sido inventado há umas décadas e o limite, para António Manuel Baptista, tinha muito de física e quase nada de céu. Ainda assim, na madrugada portuguesa de 21 de Julho de 1969, quando os astronautas começaram a saltar esquecendo-se de uma gravidade que os ensinou a caminhar, o que o professor jubilado viu na televisão a preto e branco foi o sonho dos homens-pássaros. “Eu estou convencido de que eles sentiam aquela transição entre o homem pesado e a ave, sentiam-se leves”, disse António Manuel Baptista à Pública, na mesma sala em que há 40 anos viu Armstrong e Aldrin alunarem no Mar da Tranquilidade.

Todos achamos que nos lembramos, porque há imagens, porque nos disseram, porque nascemos depois: “Houston, Tranquility Base here. The Eagle has landed”, ouviu-se Neil Armstrong a dizer a mais de 380 mil quilómetros de distância.

Mas Manuel Baptista e quem nesse dia teve acesso à televisão em Portugal e no mundo viveu o momento em absoluto. Contou as primeiras pegadas que o Homem deixou na Lua e ajudou a unir a Terra ao seu satélite depois de estarem separados durante 4,6 mil milhões de anos. Fez tudo por tudo para não descolar da televisão, a não ser para tirar os filhos da cama, como no caso do professor. “Eles acordaram estremunhados, há pouco tempo perguntei-lhes se ainda se lembravam.” Mal. A mais pequena, que na altura tinha dois anos, não se lembra de nada, adianta logo o professor. Os outros, com onze, nove e sete anos, não perceberam muito bem o que se estava a passar.

O antigo professor da Academia Militar e físico de 85 anos, que foi divulgador de ciência em programas de rádio e televisão desde os anos de 1960 até os de 1980, admite que não é fácil explicar as leis de física de Newton a crianças, e enquanto elas saltavam no sofá foi tentando falar-lhes dos fatos brancos, dos saltos leves, da razão de terem sido acordados a meio da noite. “Vocês se calhar já não se vão lembrar daqui a uns anos, mas eu quero que digam que na verdade assistiram à chegada do Homem à Lua.” Aquela noite foi um culminar de acontecimentos que António Manuel Baptista seguiu de perto durante 12 anos. Em Outubro de 1957, quando soube do “zip zip zip” metálico que circulou pela primeira vez à volta da Terra – o som “escarninho” emitido pelo Sputnik, o primeiro satélite artificial de sempre, construído pelos soviéticos –, o português encontrava-se no Instituto Nacional de Argonn, em Chicago, nos Estados Unidos. O instituto “era e continua a ser o maior centro de desenvolvimento de reactores nucleares”, explica. Na altura, o professor estava a fazer um curso de engenharia nuclear ligado à física.

“Recordo-me perfeitamente porque foi um choque. Muitos dos que trabalhavam no laboratório tomavam o seu pequeno-almoço na cantina e eu às sete e meia entrei e não ouvia a algazarra do costume. Não é bem uma cantina portuguesa ou espanhola, mas mesmo assim ainda é bastante barulhenta, e naquele dia encontrei um enorme silêncio. As pessoas pediam o bacon e os ovos a sussurrar, como se estivéssemos numa catedral, tudo com ar muito preocupado, não olhavam uns para os outros”, relata. O professor só entendeu o que se passava quando perguntou a um dos colegas.

O Sputnik estava no ar, pondo os russos na dianteira da conquista espacial, e o acontecimento tinha sido um arrombo na moral norte-americana.

“Nós estávamos todos um bocadinho em estado de choque.” O orgulho ferido dos Estados Unidos fez o Presidente norte-americano Dwight Eisenhower destinar mais fundos para o programa espacial. “Dizem uma década [para a alunagem] e aqui muita gente duvidou que em dez anos a coisa pudesse ser resolvida como foi”, relembra António Manuel Baptista. “Eu tenho o princípio de Murray Gell-Mann [físico e Nobel], que disse uma vez, tudo aquilo que não contrarie as leis da física pode acontecer.” E de facto aconteceu. Os descrentes, os mais cépticos, os que achavam que só com motores movidos a nuclear é que o objectivo seria cumprido – e António Manuel Baptista diz que ainda viu ensaios desses motores no Laboratório de Nevada -, os que defendiam que o mundo tinha assuntos mais importantes para largar dinheiro do que uma investida deste calibre foram obrigados a inclinar a cabeça para cima e olhar. “Tudo começa com um acto de fé, por isso é que estamos a enterrar uns milhares de milhões de euros num acelerador de partículas para descobrir um princípio da física que ninguém faz ideia se terá alguma vez consequências práticas”, aponta, referindo-se à máquina construída na Europa para procurar o bosão de Higgs.

Na altura, nem ele soube bem o significado científico do momento. Se calhar nem agora, quando existem novas tentativas distribuídas pelo mundo para voltarmos lá. Os projectos esperam chegar à Lua na década de 2020, mais de meio século depois da primeira viagem, com o risco de os últimos homens que por lá caminharam, hoje são só nove, todos com mais de 70 anos, morrerem no entretanto, deixando um testemunho mas levando com eles, pelo menos durante alguns anos, uma visão. “Recordo que na entrevista que Eugene Cernan [o último astronauta a pisar a Lua, durante a missão Apolo 17, em 1972] deu à SIC, não se fala uma única vez da ciência. Ele fala quase em termos metafísicos, da impressão que teve quando viu a Terra ao longe e do desejo de regressar. Isto faz parte da definição de herói.” Em 1969, a única projecção futurista que o português conseguiu pensar foi que “talvez tivéssemos um meio de conhecer melhor a Terra, o que veio a acontecer, mas não sabíamos como”. Marte era uma visão longínqua, e “a exploração do Universo ainda menos”. Existem os tais limites, a física, pelo menos o conhecimento limitado que temos dela, relembra-nos.

De qualquer forma houve consequências, desde as telecomunicações até à visão espacial que temos actualmente da Terra, que pode ajudar-nos a resolver problemas como as alterações climáticas, exemplifica o professor. Depois, existem ainda as surpresas: “Não me passava pela cabeça que fôssemos capazes de lançar telescópios gigantes como o Hubble.” Por isso é difícil adivinhar o que vai acontecer, para que servirão as próximas viagens à Lua.

“Pode considerar-se o estabelecimento de uma estação na Lua como o primeiro passo de uma ida à Marte”, sugere, adiantando que para além dos estudos científicos uma grande parte do interesse destas experiências centra-se na forma como o corpo reage às temporadas que passa no espaço. Mas porquê? Talvez porque no inconsciente da Humanidade o nosso futuro terá de nos reservar uma morada fora da Terra. “Talvez no espírito do Armstrong esteja que um dia a Humanidade se vá evadir para um sítio mais jovem onde pode recomeçar”, efabula. Não se sabe, mas é impossível negar que o sonho começou nas primeiras pegadas do astronauta. “Vocês vêm assistir a um momento extremamente interessante, talvez até importante da História da Humanidade”, disse António Manuel Baptista, nessa madrugada, aos filhos. “Quero que sejam testemunhas.”

A genética da Humanidade

É por isso que quando pensa na célebre frase dita por Armstrong de um passo para o homem e do salto para a Humanidade, o professor inverte.

“Na altura, o significado não pareceu muito claro, mas era poeticamente interessante, depois, quase que se podia dizer o contrário: foi um pequeno passo para a humanidade e um grande salto para o Homem.” Um feito tecnológico enorme, possante, dispendioso, mas apenas o começo dos começos, do que o espaço ainda nos pode reservar. Continuamos a não largar os céus, a não largar os sonhos, como antes fizeram Cyrano de Bergerac, que enviou um gafanhoto para a Lua utilizando pólvora ou Júlio Verne, que imaginou um canhão gigante na sua viagem espacial. “Há qualquer coisa de heróico na Humanidade”, diz o físico português. “A juventude parece que manifesta melhor esta componente genética da Humanidade, esta ambição de se ultrapassar, encontrar qualquer coisa, tanto que o nosso mito não é o mito do herói do passado, mas o herói do futuro, o super-homem.” Não sabemos que impacto é que a exploração espacial terá no destino da Humanidade.

“Alguns dizem que o mundo acabará em fogo”, declama António Manuel Baptista, o verso do poema do norte-americano Robert Frost intitulado “Fogo e Gelo”. O professor escolhe o gelo e especula datas, apesar de, no fundo, qualquer diferença “não deixar de ser nem consolo nem desconsolo”. É ponto assente que será daqui a muitos milhões de anos que o Sol nos pode engolir ou a órbita da Terra entrar em colapso. Muito antes, provavelmente, já não existirão condições para vivermos aqui.

O que terá acontecido nessa altura às pegadas de Armstrong? Na madrugada de há 40 anos, o sucesso da Apolo 11 foi tudo, fez quebrar uma linha invisível que parecia impossível.

Alunámos. “Há a fronteira, a fronteira é algo que queremos sempre ultrapassar”, disse o professor. Dessa vez conseguimos, repetimos o feito meia dúzia de vezes, “trivializámos a heroicidade”. Ou talvez não, se lá formos outra vez, será que os netos de António Manuel Baptista vão ser acordados pelos pais? “Possivelmente fariam isso aos filhos, sabemos que é importante, importante para quê? Vamos ver.” Não é necessário uma resposta. Continuamos a querer ser acordados para ver os homens-pássaros.

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