A pobreza em África foi agora vista por satélite

Algoritmos informáticos permitiram extrair dados de imagens de satélite para, dessa forma, calcular o rendimento das famílias em bairros de lata. Novo método poderá ajudar a combater a pobreza.

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Nos bairros de lata concentra-se a população com menos recursos Thomas Mukoya/Reuters

As paisagens nas fotografias tiradas por drones que o antropólogo norte-americano Johnny Miller divulgou há uns meses da África do Sul são desconcertantes. Observam-se subúrbios na Cidade do Cabo, onde impera um contraste absoluto entre bairros ricos e florestados de um lado e bairros de lata do outro. Esta geografia mostra como os tentáculos do “apartheid” – política da elite branca sul-africana que, durante décadas, deu mais direitos aos brancos do que aos negros e separou a sociedade em duas, fomentando o racismo – deixaram uma marca profunda no urbanismo, com consequências na vida de milhares de pessoas que, até hoje, vivem na pobreza.

Johnny Miller desmontou há uns dias o poder destas imagens ao “site” da cadeia televisiva australiana ABC: “Acho que a natureza de uma imagem captada de um local alto no céu retira a antipatia visceral que existe sobre o outro. É quase como se tudo se tornasse um problema matemático que necessita ser resolvido, um problema da esfera do design.”

Agora, é do espaço que nasceu uma outra ferramenta para ajudar a combater a pobreza olhando também para os bairros de lata. Uma equipa de investigadores dos Estados Unidos desenvolveu e testou um programa informático para fazer estimativas de pobreza a partir de imagens de satélites. Os resultados sobre a eficácia deste programa foram publicados esta sexta-feira num artigo na revista científica Science. Com este desenvolvimento, a equipa espera ajudar a combater a pobreza de uma forma mais eficaz.

Há 700 milhões de pessoas em todo o mundo que vivem abaixo do limiar de pobreza, de acordo com o Banco Mundial. Isto significa que vivem com menos de 1,9 dólares por dia (valor actualizado em Outubro de 2015). Fazendo contas e passando para euros, aquele valor equivale a menos de 51 euros por mês.

Para se combater esta situação é preciso conhecer a distribuição desta pobreza no território. Mas esta necessidade revela uma falha de base. “Um grande obstáculo no desafio de reduzir a pobreza é a falta de informação de qualidade sobre a distribuição da pobreza”, explica ao PÚBLICO Neal Jean, um dos investigadores da equipa que publicou o artigo na Science e que é da Universidade de Stanford, na Califórnia (Estados Unidos). “A aplicação dos métodos tradicionais de recenseamento dos agregados familiares é extremamente baixa, tanto a nível espacial como temporal. Por isso, muitas vezes nem sequer se sabe onde vivem as pessoas mais pobres, o que impede o desenvolvimento de intervenções [anti-pobreza] que tenham como alvo aqueles que mais beneficiariam delas.”

Em África, este problema é generalizado. “De acordo com o Banco Mundial, houve 39 países africanos entre 59 que, entre 2000 e 2010, fizeram menos de dois recenseamentos que permitissem medir a pobreza de forma representativa a nível nacional”, lê-se no artigo. Além de bastante caros, estes levantamentos são “difíceis a nível institucional, já que alguns governos vêem poucos benefícios no facto de o seu desempenho fraco ser documentado”. 

Se quiserem combater a pobreza, os países africanos precisam urgentemente deste tipo de conhecimento sobre as suas populações. Nos últimos tempos, recorreu-se ao uso de telemóveis e de redes sociais para obter esta informação, mas os dados móveis pertencem a empresas privadas e pode ser difícil obtê-los. Por outro lado, já se tentou usar imagens de satélite nocturnas, onde se vêem as luzes associadas à urbanização. Mas os mais pobres muitas vezes vivem em locais sem iluminação pública.  

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Imagem nocturna de satélite mostra África, em 2012, quase sem luz, ao contrário da Europa NASA

Para tentar contornar este problema, Neal Jean e os colegas usaram imagens de satélite com luz do dia e luz nocturna de cinco países africanos – Malawi, Nigéria, Ruanda, Tanzânia e Uganda. Com estas imagens, disponíveis em base de dados públicas, foi possível identificar as zonas mais pobres. Para isso, comparam imagens de dia onde se vêem zonas urbanizadas com imagens do mesmo local, mas à noite, onde não se vê luz naquelas zonas urbanizadas. Além disso, os algoritmos usados pelo programa identificaram nas imagens estradas, zonas urbanas, regiões agrícolas e cursos de água.

Com esta informação, a máquina algorítmica fez estimativas sobre riqueza tendo também em conta o nível económico de cada país. Finalmente, para testar a qualidade destas estimativas, a equipa comparou os resultados obtidos pela máquina algorítmica com as análises de riqueza e pobreza feitas mesmo no terreno nalgumas zonas daqueles países. Deste modo, os investigadores confirmaram que o seu modelo conseguiu fazer previsões melhores sobre o nível de riqueza e pobreza visto nas imagens do que outros modelos que usaram outros dados.

“O modelo estima as despesas médias do agregado familiar ou o seu rendimento médio para a área vista na imagem”, refere Neal Jean. “Todo o nosso programa vai ser de acesso livre online. As técnicas que desenvolvemos são genéricas e poderão ser usadas em diferentes regiões do globo para prever outros resultados além dos da pobreza, como indicadores de saúde, por exemplo a mortalidade infantil. Esperamos que seja usado por organizações não-governamentais, governos e outras organizações que estão a trabalhar para melhorar a vida das pessoas em todo o mundo.”

Tanto as imagens de satélite como as fotografias tiradas pelos drones de Johnny Miller, mostram que novas técnicas permitem novas abordagens de problemas velhos.

“Passei toda a minha carreira a fotografar pessoas – sempre achei que esta era a melhor forma de mostrar as suas histórias. Mas foi preciso voar 300 metros por cima delas para realmente conseguir chamar a atenção das pessoas. Acho que é isto que é tão fascinante – somos quase imunes a ver histórias de pobreza e desigualdade – porque a maioria dos métodos pelos quais elas são comunicadas são antigos”, diz ao PÚBLICO Johnny Miller. “Estamos a viver no mundo vibrante, no século da internet, e ainda assim comunicamos histórias de pobreza usando os métodos tradicionais da fotografia de rua, inventados por volta de 1900. O mundo não se esqueceu destas questões, simplesmente já não consegue ouvi-las.”

Notícia actualizada às 15h42 de 20 de Agosto de 2016 com declarações de Johnny Miller ao PÚBLICO.

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