Relações tóxicas na academia

Os riscos da endogamia estão reportados em todo o mundo: promove o pensamento homogéneo e despromove o mérito, prejudica a inovação, reforça as relações hierárquicas.

Fala-se de “endogamia académia” quando os professores e investigadores desenvolvem o essencial da sua carreira na mesma instituição onde fizeram a sua formação inicial, sem ter passado um período significativo, algures na sua vida, noutras universidades, organizações ou empresas. Formam-se ali, ficam ali. E, se não afrontarem os poderes instalados, progridem.

Nos países do Sul da Europa – Portugal, Espanha e Itália –, há mais “endogamia”. Nos Estados Unidos, ela parece tão mal que várias instituições têm regras para evitar a contratação dos seus diplomados.

De há uns anos a esta parte, a Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) passou a publicar relatórios sobre o tema. O último revelava que 68% dos docentes de carreira doutorados tinham feito o seu doutoramento na mesma universidade onde leccionavam. A Universidade de Coimbra era a mais endogâmica: 78%. Seguia-se a Universidade de Lisboa: 75%.

Nalgumas faculdades era mais radical ainda: nas de Direito de Coimbra e Lisboa, a taxa era, respectivamente, de 100% e 99%. “Isto significa que, nos concursos abertos para posições académicas nestas faculdades, praticamente nunca foi seleccionado um candidato doutorado fora da instituição”, nas palavras da DGEEC.

Os riscos da endogamia estão reportados em todo o mundo: promove o pensamento homogéneo e prejudica a capacidade de inovar; reforça as relações hierárquicas e o poder dos “professores de topo”; é inimiga da igualdade de oportunidades e prejudica a produtividade; onde ela reina pode não ser o mérito que determina as contratações, mas as amizades e lealdades construídas durante a formação (Estado da Educação, Conselho Nacional de Educação).

O pequeno país que somos, as regras de recrutamento que temos, os constrangimentos financeiros das universidades, tudo isto contribuiu decerto para a situação que temos. Mas que a endogamia é um problema grave ninguém duvida, e não têm faltado alertas.

Nos últimos dias, muito do que temos ouvido na sequência das denúncias de assédio que envolvem Boaventura de Sousa Santos alerta-nos para outra camada deste problema, independente dos resultados das averiguações em curso. Se, ao longo de anos de rumores e de queixas à boca pequena, uma instituição como o Centro de Estudos Sociais, ao qual estão ligadas centenas de investigadores, inclusive estrangeiros, foi incapaz de agir, é legítimo pensar que será muito pior noutros locais.

O poder das relações tóxicas em instituições fechadas é tremendo. É preciso abri-las, combater a endogamia. E criar estruturas onde seja mais fácil às eventuais vítimas queixarem-se.

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