Alentejo a saque!

A somar à agricultura superintensiva, e às renováveis, juntam-se ainda outros projectos igualmente preocupantes, com os direitos de pesquisa ou mesmo de exploração de depósitos minerais.

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A situação aqui retratada não se limita à região do Alentejo, mas será nesta zona que o fenómeno que iremos abordar atinge uma dimensão com contornos especialmente preocupantes, dados os excessos já cometidos e tudo o que está para vir. Um verdadeiro sobressalto que não nos pode paralisar.

O Alentejo é uma região que possuiu uma identidade fortíssima, uma cultura e uma paisagem admirável que soube preservar modos de vida e de cultivo que prestam a todos nós incomparáveis serviços culturais e ambientais, sendo por exemplo o montado, apesar de resultante da acção humana, um dos ecossistemas mais perfeitos em termos mundiais.

Já não passa despercebida a qualquer pessoa que viva no Alentejo ou por ele viaje a transformação brutal que está a ocorrer neste território, território que, historicamente, esteve sempre sujeito a uma exploração intensa dos seus recursos naturais ou da sua população e que se iniciou, de forma mais extensa, durante o período romano. No entanto, a mudança a que se assiste agora é bastante mais violenta, muitíssimo rápida e completamente desregulada, características típicas do tempo presente.

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Plantação de pêra-abacate no concelho de Alcácer do Sal Nuno Ferreira Santos

Trata-se, sim, de um verdadeiro assalto a este território, onde, numa primeira fase (muito recentemente), surgiram as plantações intensivas e superintensivas em monocultura, fenómeno que, pela “distância”, já nos permitiu fazer as contas aos impactes negativos e aos benefícios havidos, concluindo-se que a maioria da população e dos concelhos saiu a perder, excepto uma minúscula parte da equação, que são os proprietários ou investidores deste agro-negócio nocivo.

Que riqueza trazem à região, ou mesmo ao país, os milhares de hectares de estufas de plástico, de olival, amendoal e outras pseudoculturas? Vejamos: uma agressão sem precedentes à paisagem alentejana; poluição de lençóis freáticos, do ar e dos solos, dada a introdução de produtos químicos e de toneladas de plásticos; construção de lagares industriais que emitem fumos poluentes e resíduos às toneladas; destruição de património arqueológico em larga escala; consumo excessivo de água; erosão das terras e agravamento dos problemas sociais com a vinda de mão-de-obra mal paga e pessimamente alojada e o acelerar do despovoamento.

Como se isto não bastasse, o impacto deste agro-negócio vai sendo substituído, ou acompanhado, por um outro negócio bem mais apetecível para investidores internacionais e alguns proprietários: o desenvolvimento das pretensas energias renováveis, reclamado pela necessidade imperiosa de continuar a alimentar a megamáquina do consumo, sendo a última fronteira para o abismo a inteligência artificial, uma técnica que só vem aumentar ainda mais a necessidade de quantidades assombrosas de energia. E eis que voltamos a ver as mesmas terras anteriormente ocupadas por filas de árvores de cultura intensiva a serem, passado pouquíssimo tempo, novamente terraplenadas, desta vez para a plantação de “florestas de metal e vidro” em extensões infinitas.

As centrais solares, eólicas ou de hidrogénio que estão em marcha, sobretudo as primeiras, são já visíveis um pouco por todo o lado, mas o que se avizinha tem o potencial de um autêntico processo de “colonização imperialista do Alentejo”, com o mesmo programa de ocupação de terrenos e exploração dos recursos naturais em larga escala, tudo isto acompanhado pela necessária “envangelização dos povos” que as empresas responsáveis desconhecem profundamente. Estes “alienígenas”, vindos do “Vale do Silício” (Silicon Valley), do “Monte de Açúcar” (Zuckerberg), ou mesmo de mais perto, com as suas legiões de empreendedores e start-ups, esperam muito dos autóctones, sendo para tal necessário uma boa máquina de propaganda, engenho bem típico desta nossa “era digital”, destinado que está a transmitir ininterruptamente a lengalenga dos benefícios e a inexistência de alternativas, tudo isto colorido a verde, como convém.

Como para qualquer poder que se quer impor, é necessário acenar também com algumas benesses. Neste caso, a tarefa está já facilitada, pois a maioria dos municípios alentejanos encontra-se empobrecida, envelhecida, sobretudo no interior, o que os leva a agradecer alguns milhões em troca das destruições irreversíveis que surgirão um pouco mais tarde. E assim se vai ocultando a verdadeira dimensão do problema: aos milhares de hectares de equipamentos instalados, juntam-se áreas ocupadas por centrais eléctricas, postes e linhas, vedações a perder de vista, milhares de quilómetros de valas de cabos e centenas de quilómetros de novos acessos.

Nada nestes projectos, sobretudo os solares – que, em outra escala, seriam até muito bem-vindos – é avaliado em termos globais: qual o consumo energético necessário para a sua produção industrial? Quais os métodos de manutenção dos terrenos onde são construídos para que ali não cresçam indesejáveis plantas? Quantos milhares de litros de água são necessários para os manter limpos e eficientes durante a fase de exploração? Quantos empregos são criados? E, finalmente, quais os impactes cumulativos de projectos atrás de projectos, usando-se e abusando-se da sua divisão, primeiro em “pequenas” áreas, para depois, aos poucos, as irem alargando? Este é, como se sabe, um subterfúgio que garante a fuga a uma avaliação séria dos malefícios ambientais e sociais.

Além de todos estes impactes, não há distribuição de energia para benefício local, antes se transformam estas feridas na paisagem em áreas cercadas, campos de concentração onde a biodiversidade é praticamente inexistente e onde ninguém pode entrar.

A somar à agricultura superintensiva, e às renováveis, juntam-se ainda outros projectos igualmente preocupantes, mas que, aos poucos, vão passando pelo crivo de malha larga de diferentes entidades. São eles os direitos de pesquisa ou mesmo de exploração de depósitos minerais, onde também tudo é possível, inclusive em zonas da Rede Natura 2000, ou zonas especiais de conservação, onde se poderá vir a “legalizar” o surgimento de belas crateras tóxicas e lindas montanhas de resíduos (veja-se o caso do requerimento E79 Portugal – Montemor-o-Novo).

O Alentejo está, assim, a ser uma região a saque pela extensão desmesurada da avidez humana. Ecocídio, neocolonialismo, extractivismo são as palavras que hoje passam a descrever este novo Alentejo. Por tudo isso, é necessário que a expropriação em curso não seja acompanhada também pela expropriação do pensamento, cabendo-nos a todos agir antes que seja tarde de mais.

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