A questão curda, a Síria e a paz no Médio Oriente
O “Exército Nacional Sírio”, patrocinado pela Turquia, conta com a queda de Assad para acabar com o projeto democrático e progressista de autonomia do Rojava, o curdistão sírio.
Não é fácil explicar o que está a acontecer na Síria em poucas linhas. Não só pela complexidade do país e das diferentes facções em conflito, como também pela rapidez fulgurante do avanço das forças opostas a Bashar al-Assad que resultaram na queda do seu regime. Há, ainda assim, alguns pontos que são claros.
Em primeiro lugar, o carácter ditatorial dos regimes al-Assad, primeiro com Hafez, seguido do seu filho Bashar. Seria demorado listar todos os crimes cometidos por Bashar al-Assad desde o início da revolta que, tal como noutros países árabes, se iniciou em 2011. A própria escala impressiona, com centenas de milhares de mortos, milhares de prisioneiros políticos e milhões de sírios refugiados e deslocados. Acrescentam-se a esta lista os vários ataques com armas químicas e as práticas de tortura reportadas em todo o país. Assad, muitas vezes apontado como um mal menor para o país, é, importa reforçá-lo, um ditador responsável por um dos piores e mais mortíferos conflitos no século XXI.
Em segundo lugar, é impossível catalogar com um único rótulo as forças que agora avançam em direção a Damasco. Numa mistura entre jiadistas do HTS (antigamente associados à Al-Qaeda), combatentes do que sobrou do ISIS, membros do Exército Livre da Síria, mercenários estrangeiros a soldo da Turquia e reunidos num ironicamente chamado “Exército Nacional Sírio” ou ainda simples cidadãos que desejam regressar às suas casas, a complexidade de interesses e de visões para o país é tal que faz temer um cenário catastrófico na Síria pós-Assad.
Há, no entanto, uma terceira parte no tabuleiro sírio que merece muita mais atenção do que a que lhe tem sido dada. No noroeste do país, zona de maioria curda, tem, desde há vários anos, sido desenvolvido um sistema político democrático e em radical contraste com o que acontece não só na Síria como nos países vizinhos. Assente no respeito pelas diferentes comunidades do país, sejam elas minorias linguísticas, étnicas ou religiosas, este projeto democrático apoia-se na defesa do papel das mulheres na sociedade, na defesa do meio ambiente e no progressismo político.
Se a relação entre curdos na Síria e os regimes Assad foi sempre tensa, a relação com a Turquia é de conflito aberto. Não por acaso, Erdoğan patrocina o “Exército Nacional Sírio” que, ocupando de facto uma parte da Síria de maioria curda desde de 2019, conta com a queda de Assad e o caos que se lhe seguirá para acabar com o projeto de autonomia do Rojava, o curdistão sírio. Não só porque, fazendo-o, tem mais domínio sobre aquilo que será o futuro da Síria, mas também, e talvez sobretudo, porque enfraquece as ânsias de autonomia no curdistão turco.
É impossível separar a ação curda na Síria da Turquia. Para os curdos, povo espalhado entre quatro países e com milhões na diáspora, e em particular para os curdos da Síria e da Turquia, a existência de uma fronteira não apaga o facto de serem um mesmo povo. A ação da Turquia no curdistão sírio terá, portanto, consequências na política turca na qual, há décadas, aquilo que é conhecido como “a questão curda” marca o debate político. E é impossível falar da questão curda sem falar de Abdullah Öcalan.
Muitas vezes comparado com Nelson Mandela, Öcalan é um dos fundadores do PKK, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, que nos anos 1980 pegou em armas reclamando um Estado curdo independente. Detido em 1999, Öcalan está preso na infame prisão da ilha de Imrali, onde, ao arrepio de qualquer critério de direito internacional, passa longos períodos em isolamento total, sem qualquer possibilidade de visita por parte de familiares ou dos seus advogados.
A evolução do pensamento de Öcalan durante os anos de detenção é absolutamente notável: tendo inicialmente lutado pela criação de um Estado curdo independente, Öcalan desenvolveu uma extensa e aprofundada obra, em que aponta para a ideia de autonomia dentro dos Estados como a melhor forma de assegurar a paz e a convivência entre as diferentes comunidades e o respeito por todas as minorias. É essa mensagem que o próprio tem comunicado com o exterior sempre que tem possibilidade e que tem sido transmitida pelos partidos políticos turcos próximos da causa curda, como o faz atualmente o Partido DEM.
Tive a oportunidade de, no início do mês, integrar uma comitiva internacional que apresentou ao Ministério da Justiça turco um requerimento para acabar com o isolamento a que Abdullah Öcalan está condenado, de modo a que se possam dar passos concretos em direção a uma solução de paz duradoura na Turquia e em reconhecimento dos direitos de todas as minorias do país. A libertação de Öcalan, tal como a de Mandela em 1990, representaria certamente uma nova etapa para a Turquia e para a região em que todos sairiam a ganhar.
Inspirados na obra de Abdullah Öcalan, os curdos da Síria, aos quais se juntaram várias tribos árabes, usufruindo da autonomia que conseguiram com o desenrolar da guerra civil, têm vindo a colocar em prática os seus princípios de “confederalismo democrático”, trilhando um caminho único e que poderia servir de exemplo para toda a Síria. E é precisamente por isso que este projeto de autonomia e a população curda na síria está novamente em risco. Defendê-lo é defender aquela que parece ser a única alternativa de paz e respeito por todas as comunidades na Síria e no Médio Oriente.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico