“A liberdade cultural está em perigo”, alerta manifesto europeu face ao avanço da extrema-direita
Situação em países como Hungria, Eslováquia e Bulgária e ameaças em curso na Áustria, nos Países Baixos e na Alemanha exigem acção imediata do Parlamento Europeu. “Não é demasiado tarde!”
"Alarmados pelos recentes desenvolvimentos nas políticas culturais de vários Estados-membros da União Europeia", mais de 200 artistas, programadores e líderes de organizações culturais da Europa, entre os quais o administrador do Centro Cultural de Belém (CCB) Delfim Sardo e os directores artísticos do Teatro Nacional D. Maria II, Pedro Penim, do São Luiz Teatro Municipal, Miguel Loureiro, do Teatro do Bairro Alto, e Francisco Frazão, pediram esta tarde aos deputados com assento no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, acções urgentes para salvaguardar a "abertura" e a "diversidade cultural" do continente.
"Se elas desaparecerem, o projecto europeu perde a sua alma e o seu significado", diz a carta encabeçada por Milo Rau e Artemis Vakianis, directores do Wiener Festwochen, um dos mais influentes festivais de artes performativas do panorama internacional. "Por favor, actuem! Ainda não é demasiado tarde!"
Inflexões nacionalistas como a que há anos caracteriza a Hungria de Viktor Orbán, com o apagamento e a censura de vozes dissonantes da governação, e como as que começam a ganhar forma em Estados-membros governados pela extrema-direita como os Países Baixos, comprometem a liberdade artística e a liberdade de expressão que são pilares do projecto europeu, argumenta o manifesto RESISTANCE NOW: FREE CULTURE, promovido por um consórcio que junta ao Wiener Festwochen a Convenção Europeia do Teatro, a associação Opera Europa e a Rede Prospero. Entre os seus primeiros subscritores figuram os nomes de artistas já directamente visados pela ascensão da extrema-direita ou da direita radical, como Matej Drlička, o recém-demitido director do Teatro Nacional da Eslováquia, e Vasil Vasilev, director-geral do Teatro Nacional Ivan Vazov, na Bulgária.
Numa ofensiva "orquestrada" que tem como objectivo "o desaparecimento de uma diversidade cultural em crescimento desde 1989", diz a carta, "há meses, ou mesmo anos, e nalguns Estados-membros há já uma década, que as instituições culturais se vêem submetidas a uma campanha política que restringe a liberdade de expressão e a liberdade artística, eliminando, através de cortes e interdições, tudo o que não esteja conforme com a linha de alianças da direita conservadora e nacionalista".
É o próprio projecto da União Europeia que se encontra ameaçado, alerta o manifesto que, a partir deste sábado, pode ser subscrito aqui por qualquer cidadão, e que entre os seus mais de 200 signatários iniciais reunia já artistas e gestores culturais de 39 países, incluindo todos os 27 Estados-membros. "Não nos iludamos: se uma cultura aberta, não sectária e transfronteiriça desaparece, o próprio projecto europeu de unificação e paz acabará por desaparecer também."
Lembrando que o Quadro Estratégico para a Política Cultural da União Europeia admite a intervenção de Bruxelas nos Estados-membros quando se colocam "crises e desafios inesperados", o manifesto lançado esta tarde argumenta que "a Europa está a atravessar uma dessas crises". O Parlamento Europeu, defendem os signatários, tem por isso obrigação de "finalmente tomar uma posição explícita" face aos danos "agudos" já causados em vários países (e que estão também a afectar a "cooperação transnacional"), nomeadamente através da adopção de uma "Lei da Liberdade Cultural Europeia" que reforce os princípios da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e o Plano de Trabalho para a Cultura 2023-2026.
“Auto-censura, medo e depressão”
"Enquanto o sector cultural húngaro foi substancialmente posto na linha através de novas leis de regulação dos media e de cortes orçamentais, há saneamentos com motivações puramente políticas a ter lugar na Eslováquia — basta nomear as demissões dos directores do Teatro Nacional e da Galeria Nacional", começa por apontar a carta.
"Os ataques à liberdade artística atingiriam um nível quase absurdo em vários Estados-membros: no Teatro Nacional de Sófia, uma peça com mais de cem anos, passada numa Bulgária fictícia, foi representada perante uma sala vazia na noite de estreia, devido a ataques de círculos ultranacionalistas que impediram fisicamente os espectadores de entrarem no edifício do teatro. Na Áustria, o Partido da Liberdade (FPÖ), de direita nacionalista, ameaça cortar o financiamento à cultura "woke" — o que significa basicamente toda a cultura que vá para além de organizações musicais de carácter local —, ao passo que o Partido da Liberdade de Geert Wilders, nos Países Baixos, a União Nacional, em França, e a Alternativa para a Democracia (AfD), na Alemanha, estão a impulsionar cortes radicais no financiamento de todas as instituições culturais que não são 'tradicionais' e 'nacionais'", enumeram ainda os signatários do manifesto.
Tomadas de assalto por "burocratas cúmplices" nomeados pelos Governos, "ou condenadas a morrer à fome", instituições culturais importantes de vários países lidam com cortes orçamentais que alimentam uma cultura de "auto-censura, medo e depressão", obstruções, despedimentos e encerramentos compulsivos, nota ainda o manifesto, que em Portugal foi subscrito também pela directora para as artes performativas e o pensamento do CCB, Aida Tavares, e pelos directores artísticos do Teatro do Noroeste e da BoCa — Bienal de Artes Contemporâneas, respectivamente Ricardo Simões e John Romão.
Entre as instituições europeias de topo que endossam o manifesto lançado pelo encenador suíço Milo Rau a partir do festival que agora dirige em Viena estão igualmente o Festival de Avignon, dirigido pelo português Tiago Rodrigues; várias das mais importantes organizações culturais belgas (incluindo a ópera federal La Monnaie/De Munt, a Ópera Ballet da Flandres, a Ópera Real da Valónia, o Kaaitheater, o BOZAR — Centro de Belas Artes, o centro cultural deSingel e o Kaaitheater); os teatros nacionais de Praga e de Brno; a Ópera e Ballet Nacional da Finlândia; as óperas nacionais de Lyon, do Reno e de Montpellier, em França; as históricas companhias de teatro Berliner Ensemble e Deutsches Theater de Berlim; o Nowy Teatr, de Varsóvia, encabeçado pelo carismático Krzysztof Warlikowski; e a Ópera Real Sueca e o teatro nacional Dramaten, a casa-mãe de Ingmar Bergman.