Descarbonização: do novo mix energético à dieta de emissões
A conferência “Descarbonização: Que caminho para Portugal?”, organizada pelo Estúdio P, reuniu representantes das principais empresas portuguesas que investem num futuro mais sustentável.
Ao longo de um dia, na Fundação Oriente, os especialistas alertaram para os principais obstáculos que ainda é necessário ultrapassar e sublinharam a urgência de acelerar soluções para atingir um mundo de carbono zero. Na abertura da conferência, que decorreu a 15 de Novembro, Sandra Winkler, directora sénior de Insights no World Energy Council, destacou numa mensagem vídeo que, para alcançar a neutralidade carbónica, é essencial mudar o paradigma e colocar as pessoas no centro, indo além da tecnologia e investimento. Referiu ainda Portugal como um exemplo na área da energia verde. A ideia foi reforçada pelos vários oradores, que apontaram a localização estratégica do país e as condições favoráveis de sol e vento como um motor para o desenvolvimento das energias renováveis.
Energia: um novo mix, um novo paradigma
No primeiro painel da manhã, intitulado “Energia: um novo mix, um novo paradigma”, Ana Luís de Sousa, da Associação Portuguesa de Energia, respondeu à incitação da moderadora Fernanda Freitas sobre se já existe uma bimby para a energia, afirmando que não existe uma “que possa funcionar para todos os países, porque cada região tem as suas especificidades”.
A diversificação está na base da transição energética, como referiu Nevin Alija, do World Energy Council. “Temos de ter flexibilidade no sistema e garantir uma variedade de fontes, que a longo prazo vão permitir segurança, independência energética e resiliência económica. O desafio de Portugal e da Europa é não só facilitar uma transição verde, mas também assegurar uma economia competitiva”, realçou.
João Martins de Carvalho, administrador da E-Redes, considerou que o caminho já está a ser traçado: “Portugal já percebeu esta realidade e esta vantagem competitiva há alguns anos e tem havido progressos muito relevantes nesta matéria. Cerca de 75 por cento das fontes de energia eléctrica já são renováveis, comparando com 52 por cento em Espanha que também é um país com muita exposição solar.”
“No futuro é esperado um novo mix energético”
A ideia foi defendida por Sérgio Goulart Machado, director de Hidrogénio e Renováveis da Galp, na apresentação do “Case Study: A estratégia da transformação para a neutralidade carbónica”, para quem o sector dos transportes enfrenta grandes mudanças. Actualmente, 95 por cento da energia consumida em transportes rodoviários, marítimos e aéreos provém de combustíveis fósseis, com apenas 5 por cento de biocombustíveis e menos de 1% de electricidade. Até 2040, prevê-se um mix energético mais equilibrado, com maior presença de electricidade, hidrogénio, biocombustíveis e gás natural. A energia de origem fóssil nos transportes deverá recuar para 50 por cento, enquanto fontes de baixo carbono e electricidade avançarão para 35 por cento e 15 por cento, respectivamente. Sérgio Goulart destacou ainda dois projectos em Sines, com um investimento de 650 milhões de euros: uma unidade de biocombustíveis avançados e uma das maiores instalações de hidrogénio verde do mundo. Estes projectos irão eliminar cerca de 910 mil toneladas de CO₂ por ano, equivalente à retirada de 700 mil carros das estradas portuguesas, impactando significativamente os transportes e a indústria.
Transformar a indústria: Qual o caminho?
A descarbonização é uma prioridade inadiável para a indústria. “A sustentabilidade deve estar à frente de qualquer compromisso. Quem não se adaptar e reindustrializar, não sobreviverá – nem nós, nem o país, nem o planeta”, alertou Sandro Conceição, Director de Co-Processing & Renewable Energies da CIMPOR, no painel “Transformar a indústria: Qual o caminho?”. Na CIMPOR, os planos estratégicos focam-se na reconversão, visando alcançar 50 por cento de autonomia em energia verde, nos próximos 15 anos. A empresa aposta na substituição de combustíveis fósseis por combustíveis alternativos e no desenvolvimento de projectos de hidrogénio verde como fonte de energia.
Para Manuel Gil Antunes, Chief Executive Officer da Hychem, a alteração política nos Estados Unidos ou as mudanças geoestratégicas podem atrasar ou tornar mais lentos os processos para a descarbonização, mas temos que combater os obstáculos, porque não há outro caminho a não ser tornar o mundo mais sustentável. “A lógica de progressividade, de fazermos o que está ao nosso alcance desde já, não deixarmos para amanhã o que podemos fazer hoje é o caminho certo, porque ninguém tem uma solução única ou perfeita”.
A mesma perspectiva foi partilhada por José Costa Pereira, Director de Energia da VEOLIA: “não há só um caminho, mas vários e se há um sector onde é mesmo muito divertido trabalhar neste momento é na energia, porque temos a capacidade de ir inventando novas soluções e novos caminhos”. Mas nem tudo é diversão, quais são as maiores preocupações neste momento? Para este responsável é a necessidade de “energia mais barata, porque é o que atrasa o investimento”, enquanto que para Manuel Gil Antunes é preciso solidificar as políticas públicas para o sector da transição energética.
Mobilidade eléctrica e smart cities: Uma nova forma de viver
Da indústria para a mobilidade eléctrica e smart cities. Este foi o tema do último painel da manhã, que abordou o conceito das cidades inteligentes tanto no espaço urbano quanto no aéreo, com destaque para os veículos aéreos eléctricos de descolagem e aterragem vertical, que podem descongestionar os centros urbanos e melhorar a mobilidade. “As smart cities não se limitam ao que vemos no chão, mas também ao que está nos céus, com soluções aéreas que podem descongestionar as cidades. A mobilidade aérea é uma oportunidade para transformar a forma como vivemos, tornando as cidades mais conectadas e sustentáveis. No entanto, é crucial garantir que essas soluções sejam acessíveis a todos e não se limitem às elites", defendeu Emília Baltazar, coordenadora do Instituto Superior de Educação e Ciências de Lisboa para a Sustentabilidade na Gestão.
Ainda não chegámos a este cenário futurista, mas Marcus Torres, country manager da ChargeGuru, explicou como a mobilidade eléctrica já faz parte da sua vida, realçando o conforto de carregar o carro em casa sem precisar de paragens para abastecimento. Para Marcus Torres “não basta esperar que a próxima geração resolva os problemas, temos de acelerar” no caminho para a descarbonização.
A forma de viver nas cidades vai ter mudanças profundas no futuro, refere Artur Costa, Business Development Ocean da CEIIA. Com o crescimento acelerado da população e dos centros urbanos, é necessário pensar em soluções inovadoras para dar resposta aos desafios da mobilidade.
Luís Tiago Ferreira, responsável pela área de Smart Cities e Iluminação Pública da E-REDES, subscreve a ideia de que as cidades estão cada vez mais densas e complexas, alertando para a sobrecarga nas redes urbanas devido ao aumento dos carros eléctricos, referindo que as infra-estruturas necessárias e as instalações de carregamento são fundamentais para a evolução da mobilidade eléctrica.
Speed DAT(A)ING: Como os dados podem suportar as mudanças de hábitos de consumo e investimento
Os dados são cada vez mais importantes para a análise não só da mobilidade eléctrica, mas dos factores globais que contribuem para a descarbonização. Ricardo Jorge Bessa, coordenador do Centro de Sistemas de Energia do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência, sublinhou na apresentação “Speed DAT(A)ING: Como os dados podem suportar as mudanças de hábitos de consumo e investimento” que os dados podem ser uma ferramenta poderosa para maximizar a eficiência do consumo energético, guiar o comportamento do consumidor ou ajudar a prever a evolução dos mercados financeiros, através de uma abordagem mais informada e proactiva. À medida que os hábitos dos consumidores mudam, os dados tornam-se uma ferramenta valiosa para orientar decisões mais estratégicas e personalizadas.
Consumo e retalho: precisamos de uma dieta de emissões?
Neste painel, Maria João Veiga Gomes, directora da Academia Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal, realçou a importância de educar os consumidores sobre a durabilidade dos produtos, sugerindo que, muitas vezes, alimentos como conservas podem ser consumidos após a data de validade, sem risco para a saúde. Esta responsável também comentou a necessidade de promover o consumo sustentável e evitar desperdícios, ensinando o público a usar os produtos de maneira mais consciente.
Víctor Vieira, presidente da direcção do Zero Waste Lab, mostrou também preocupação com estes aspectos, considerando que “a melhor forma de gerir lixo é não o produzir”. Para atingir uma maior eficiência e sustentabilidade é necessário que os esforços para um mundo com menos desperdício estejam alinhados com as tendências de consumo. “Nos últimos 15 anos, duplicámos o consumo de roupa e não tem a ver com o crescimento populacional: destes 50 por cento que duplicámos usamos a roupa 30 por cento menos”, refere.
Já Cristina Câmara, directora de Sustentabilidade da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição, considera que é necessário passar da prática à acção, destaca a importância de apoios financeiros, como incentivos fiscais, para facilitar a transição para um mundo mais sustentável, especialmente nas áreas agrícolas e do transporte, e defende a necessidade de políticas direccionadas para a descarbonização da economia.
Descarbonizar a Economia: o passo-a-passo da Sonae
Durante o período da tarde, a directora de Sustentabilidade da Sonae, Sónia Cardoso, apresentou o caso prático “Descarbonizar a Economia: o passo-a-passo da Sonae”, com base na estratégia de sustentabilidade para o ciclo 2023-2026, focada em quatro pilares: descarbonização, valorização da biodiversidade, promoção da circularidade e desenvolvimento humano. Como gestora activa do seu portfólio, a Sonae busca integrar práticas sustentáveis em toda a sua cadeia de valor, desde a operação até a colaboração com empresas parceiras. Compromete-se a alcançar a neutralidade carbónica até 2040, com acções que envolvem eficiência energética, transição para fontes renováveis e inovação em novos produtos de baixo carbono. Como explicou a responsável, a Sonae já demonstrou avanços significativos, como a redução de 8 por cento das emissões e a adopção de energia renovável em 40 por cento do seu consumo em 2023.
Investimento & Governance: novos valores para mais descarbonização
Seguiu-se o painel intitulado “Investimento & Governance”. José Costa Pinto, Membro da direcção do Instituto Português de Corporate Governance, destacou que, actualmente, as empresas não se limitam a apostar nos lucros, devem também considerar aspectos sociais e ambientais na sua gestão, aplicando práticas de governança corporativa que incluem novos valores.
José Tavares, chief operating officer da SAP e representante do Instituto Português de Corporate Governance, abordou a questão da sustentabilidade nas empresas, realçando que a maior parte da pegada de carbono acontece fora das instalações das organizações. Por isso, é necessário considerar toda a cadeia de valor, utilizando tecnologias que permitam recolher dados precisos e operacionais. Para este responsável, as empresas devem tratar o carbono da mesma forma que gerem o dinheiro, o que envolve ter uma "contabilidade de carbono".
João Gaspar Marques, conselheiro estratégico da Decarb.earth, mostrou uma perspectiva diferente, na medida em que trabalha em mercados emergentes como a África do Sul. “É absolutamente fundamental não só pensar no nosso consumidor, mas também que vivemos num sistema profundamente globalizado em que muitas dessas emissões são criadas em jurisdições completamente diferentes das nossas, em que não existe um standard de comparação com o cenário europeu”, sublinhou. O mundo ocidental está muito dependente da cadeia de abastecimento da China: “Qualquer discussão que não traga o mercado chinês para a mesa é uma conversa sem sentido, porque estamos a falar de um só país que produz 25 a 27 por cento das emissões de carbono a nível mundial”.
No encerramento da conferência, a ministra do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho, sublinhou a prioridade do Governo em avançar na descarbonização, com metas como a redução de 55 por cento das emissões e o alcance de 51 por cento de energias renováveis até 2030. Destacou ainda a relevância de reflectir sobre questões como a “Descarbonização: Que caminho para Portugal?”, organizada na continuidade da primeira edição, “O Hidrogénio: Que caminho para Portugal?”.
No final, a organização deixou a promessa: o próximo debate terá como tema “Urbe: Que caminho para Portugal?”.