Língua azul: apoios aos produtores pecuários ainda não passaram de promessas

Em audição parlamentar, várias organizações de agricultores criticaram duramente o ministro da Agricultura por só ter actuado no surto de língua azul “depois de a casa estar a arder”.

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A doença da língua azul tem provocado milhares mortes no rebanhos de ovelhas e borregos, em particular no Alentejo Rui Gaudêncio
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Reacção tardia na aplicação de medidas de controlo que deveriam ter sido implementadas na sequência do surto dos serótipos do vírus da língua azul, descoordenação entre serviços e escassez de apoios na distribuição e financiamento de vacinas – assim se sintetizam o teor das críticas endereçadas ao ministro da Agricultura e Pescas, José Manuel Fernandes, na audição parlamentar que decorreu durante toda a tarde de terça-feira na Comissão de Agricultura e Pescas.

Treze associações representativas dos agricultores e produtores pecuários, grupos de defesa sanitária do Norte, Centro e Sul do país foram unânimes na sua apreciação: a tutela não tem estado à altura no combate à doença da língua azul, desde a sua declaração, com a detecção pela primeira vez em Portugal do serótipo 3 deste vírus, numa exploração de Évora a 13 de Setembro. Estavam já presentes em Portugal os serótipos 1 e 4 da doença da língua azul, ou febre catarral ovina, que é transmitida pela picada de mosquitos e atinge sobretudo as ovelhas, ainda que as vacas e as cabras também sejam infectadas. Não é uma doença transmissível aos seres humanos.

O requerimento para a audição parlamentar tinha sido apresentado pelos grupos parlamentares do Chega, PS, PCP e PSD e teve a participação por videoconferência da directora-geral de Alimentação e Veterinária, Susana Pombo.

Foi um debate tenso, repleto de críticas ao ministro José Manuel Fernandes, com todos os intervenientes a reconhecer que o combate à língua azul se pautou por “reacções tardias da parte do Governo”, vincou Pedro Santos em representação da Confederação Nacional de Agricultura (CNA), garantindo que até ao dia anterior, 25 de Novembro, têm sido “os produtores (pecuários) a pagar a vacina”. As verbas prometidas pelo Governo “ainda não chegaram”.

Por sua vez, a ACOS – Associação de Agricultores do Sul, através do seu presidente Rui Garrido, fez uma resenha dos acontecimentos desde que a doença foi identificada numa exploração de ovinos em Torre de Coelheiros, nos arredores de Évora. “Tivemos a percepção de que as coisas se estavam a complicar com a evolução da doença”, lembrou o dirigente associativo, acrescentando que “quando em Espanha já se discutia a vacinação em Portugal não se falava do problema”. Os alertas então feitos não tiveram eco no ministro da Agricultura e hoje “podemos dizer que a gravidade do que se passa no terreno é muito maior do que se pensava”.

“O Governo tapou o sol com uma peneira”

No período mais crítico do surto da língua azul, no final de Outubro, “tornou-se impossível recolher tantos cadáveres de animais”, salientou Rui Garrido. A ACOS é a entidade que assegura o funcionamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos na Exploração (SIRCA) no Alentejo e Algarve e Miguel Madeira, vice-presidente da Associação de Agricultores do Sul, também presente na audição, recordou o “acréscimo brutal” na mortalidade dos animais.

Em média, a capacidade dos serviços do SIRCA suporta a recepção entre 600 e 700 animais, mas “chegámos a recolher 3200 cadáveres de animais”, contou Miguel Madeira. Só no dia 31 de Outubro a ACOS recebeu 1511 pedidos para a recolha de animais mortos, mobilizando 14 carrinhas e dois camiões. “Foi humanamente impossível recolher tantos animais em tantos locais”, reconheceu Rui Garrido.

Mas, apesar da dimensão da calamidade, “os apoios para a vacina do serótipo 3 não chegaram a não ser a promessa”, observou, por sua vez, o vice-presidente da ACOS.

António Minas Pinheiro, representante Associação de Agricultores de Portalegre (AAP), reforçou o teor crítico ao papel do Ministério da Agricultura e Pescas, recordando que a 7 de Outubro fez um comunicado ao ministro da Agricultura a dizer que “os animais já estavam a ser vacinados em Espanha” e agora “estamos a vacinar depois de declarada a doença” – uma medida que não está a impedir a “propagação da doença, que não está controlada”, disse.

Da parte de António Minas Pinheiro ficou ainda um alerta: “Em Março/Abril, o surto vai voltar com o serótipo 8 e com taxas de mortalidade mais elevadas.” Perante esta eventualidade, salientada por várias organizações de agricultores presentes na audição parlamentar, “o Ministério da Agricultura já devia estar a programar a distribuição da vacina de forma gratuita”.

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O vírus da língua azul atinge sobretudo as ovelhas, ainda que os bovinos e as cabras também possam ser infectados Rui Gaudêncio

O testemunho da Associação de Agricultores do Litoral Alentejano, por Ana Brigite Matias, foi marcado pela contundência: “É muito mau o que está a acontecer porque o Governo tapou o sol com uma peneira.” A leitura que fez no decorrer dos acontecimentos permitiu-lhe concluir que a “burocracia fez perder duas a três semanas antes de se iniciarem as vacinações”. Por força da pressão e das necessidades, “os veterinários não tinham mãos a medir com os pedidos que chegavam”.

O processo de recolha dos cadáveres de animais também mereceu reparos da parte de Ana Matias: “Chegámos a juntar 50 animais à beira da estrada”, frisando que a “DGAV [Direcção-Geral de Agricultura e Veterinária] dizia que os animais podiam ser enterrados, mas o SIRCA assumia o contrário.”

Os prejuízos para os produtores foram sintetizados por Ana Matias: “Um borrego vale 100 euros e o subsídio que o produtor recebe é de 23 euros.” Significa que no próximo Natal “só os ricos é que vão chegar ao borrego, porque o consumidor comum só terá acesso ao bacalhau e ao polvo”, antecipa a representante dos produtores pecuários do litoral alentejano.

Também Afonso Nascimento, da Associação de Criadores de Gado do Algarve, deixou o seu alerta sobre o futuro próximo: “O serótipo 3 já aí está e o 8 temo-lo à porta”, em Espanha, uma advertência que o bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários, Pedro Fabrica reforçou, dando ainda conta da presença na Europa do serótipo 12 do vírus da língua azul, para o qual ainda não há vacina.

Em relação ao serótipo 3 identificado em Portugal, o bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários interroga-se com uma dúvida que ainda persiste: “Como é que o vírus atravessou o território europeu, vindo da Holanda para lançar o foco da doença em Évora? Como é que veio aqui parar?” A esta dúvida acrescentou uma certeza: “A actuação [do Governo no combate à língua azul] veio só após a casa estar a arder”, cujas consequências ainda não são completamente conhecidas.

Quantos animais morreram de língua azul, afinal?

Com efeito, a pergunta colocada pelo deputado socialista, Nelson Brito, eleito pelo círculo eleitoral de Beja – “quantos animais já morreram com a doença” –, continua a não ter uma resposta muito concreta.

A representante da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), Rita Ferreira, respondeu que estaria em condições de avançar números, que, no entanto, não os apresentou durante a audição parlamentar. Por sua vez, a directora-geral de Alimentação e Veterinária adiantou que animais morreram ao presente: “[Foram] quatro vezes superiores aos registados no ano passado e a morbilidade chegou a atingir os 40%”, disse Susana Pombo.

No seu site, a DGAV actualizou a situação da língua azul no país até à data de 26 de Novembro, correspondendo às notificações que tinha recebido até àquele dia, que podem não reflectir os dados completos: as ovelhas mortas notificadas são quase 19 mil (18.928) e os bovinos apenas um. Em relação ao número de animais notificados com sintomas (incluindo os mortos), houve 64.564 ovelhas e 266 bovinos. Já o número de abortos vai em quase 6500 (6465), relativos apenas às ovelhas, e com a esmagadora maioria (4500 animais) ocorrida no distrito de Beja. Quanto às explorações pecuárias afectadas, reportaram-se 1120 explorações de ovelhas e 23 de bovinos. O distrito de Beja é o mais afectado, seguindo-se o de Évora e depois, em número decrescente, Portalegre, Santarém e Castelo Branco.

Reagindo às críticas das associações sobre o atraso no processo de vacinação, Susana Pombo descreveu as acções do serviço que dirige: a 13 de Setembro foi detectado o surto em Évora; a 23 de Setembro foi autorizada a vacina; e a 2 de Outubro iniciou-se a vacinação.

Até à última terça-feira, dia 25 de Novembro, foram vacinados 230 mil pequenos ruminantes. Para todas as vacinas aplicadas entre 2 de Outubro e 30 de Novembro, os produtores vão ser ressarcidos, “durante o mês de Dezembro”, dos encargos que tiveram de suportar com a sua aquisição.

A directora-geral de Alimentação e Veterinária garantiu que já existem vacinas suficientes para os serótipos 1 e 4, mas para o serótipo 3, que já afecta 12 países europeus, a sua aplicação continua a ter um carácter voluntário. “Só será obrigatória quando a sua disponibilidade de doses no mercado estiver assegurada”, destacou Susana Pombo.

As organizações de agricultores foram unânimes nas preocupações em relação ao futuro imediato. Para além da ameaça que continuará a pairar em 2025 com o recrudescimento dos animais infectados pelo vírus da língua azul, subsiste outra incógnita. Por causa do surto de língua azul, o número de abortos de borregos oscilou entre os 60% e os 80%, colocando em causa os encabeçamentos dos pequenos ruminantes na próxima campanha, assim como a possibilidade de as fêmeas que abortaram e resistiram à doença puderem voltar a procriar.

Ao fim de dois meses e meio depois de ter sido detectado em Évora o serótipo 3 do vírus da língua azul, os prejuízos globais deste surto e a estimativa do número real de animais que de facto morreram (para lá das notificações oficiais) continuam por divulgar. O Ministério da Agricultura e Pescas insiste em manter o silêncio sobre esta e outras questões que lhe foram colocadas pelo PÚBLICO.

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