Donald Trump, o Morfeu americano
É quase cruel. O dinheiro prevaleceu sobre a democracia. O apelo à preservação dos valores democráticos não soou tão urgente aos americanos como o apelo ao progresso económico.
Uma semana após as eleições presidenciais americanas, sucedem-se as análises que explicam a vitória de Donald Trump sobre Kamala Harris. Com a legitimidade de quem estudou, trabalhou, e viveu nos Estados Unidos, permito-me acrescentar mais uma: a tangibilização do sonho americano. Qual Morfeu, Trump embalou os americanos contando uma estória simples de devolução do poder de compra às gerações pós-boomers, envolta nos macios lençóis da redução de impostos, do incentivo à produção nacional, e do protecionismo económico. A ameaça do pesadelo da recessão económica, marcada pela alta inflação e incerteza no mercado de trabalho, foi o leito que suportou a narrativa da campanha de Trump.
Embora a economia americana durante o mandato de Biden não tenha tido um desempenho negativo, a comparação com o mandato de Trump, aos olhos de muitos eleitores, foi desfavorável para os democratas. Por exemplo, o Tax Cuts and Jobs Act, logo no início da administração de Trump, reduziu drasticamente o imposto corporativo de uma taxa de 35% para 21%, estimulando o investimento nacional e estrangeiro, e, em consequência, a criação de emprego. Biden, por outro lado, aumentou os impostos sobre empresas e indivíduos de rendimentos mais elevados, alocando verbas para investimento na melhoria das condições estruturais do país, como o Infrastructure Investment and Jobs Act, medida esta de longo prazo, da qual os eleitores, no curto prazo, não sentiram qualquer impacto no seu rendimento pessoal.
O sucesso da fórmula económica em disputas eleitorais americanas não é novidade. Em 1992, a frase "Its the economy, stupid!" surge como parte da campanha presidencial do democrata Bill Clinton contra o incumbente republicano George Bush. Na época, os EUA encontravam-se em recessão económica e, embora a frase se destinasse a motivar internamente a equipa e voluntários de campanha, rapidamente chegou ao eleitorado e tornou-se um dos lemas mais marcantes da campanha, oferecendo a Bill Clinton uma vitória quase surpreendente, mas incontestável.
De facto, a política é a arte do possível, da tangibilidade das circunstâncias. Mas as campanhas políticas são a arte da esperança, um exercício de tornar tangível o que é intangível. Campanhas bem sucedidas prometem um futuro melhor, livre do realismo das circunstâncias do presente. Trump embalou o povo com o "sonho americano". Um sonho de esperança de que qualquer pessoa, independentemente da sua origem, pode alcançar o sucesso e a prosperidade através do trabalho árduo e da sua determinação. E acertou. Antes de tudo, o "sonho americano" é dinheiro, tangível e materialista.
Kamala Harris apostou no apelo à defesa da democracia. Com um discurso estruturado em torno dos eventos de 6 de janeiro de 2021 e da necessidade de proteger o sistema democrático, a vice-presidente saiu em defesa das instituições e dos valores fundamentais do país. No entanto, a narrativa de proteção da democracia, embora vital para a identidade americana, não conseguiu capturar o imaginário popular da mesma forma que o tema económico. Não funcionou. É quase cruel. O dinheiro prevaleceu sobre a democracia. O apelo à preservação dos valores democráticos não soou tão urgente aos americanos como o apelo ao progresso económico.
Ao colocar a economia no centro da campanha, Donald Trump reconectou-se com uma necessidade visceral do eleitorado: a recuperação do seu poder de compra. Num país onde o "sonho americano" continua a ressoar como promessa de ascensão social, a narrativa de que é possível devolver aos cidadãos o que, na sua visão, lhes foi retirado por políticas ineficientes e propostas mal conseguidas de Joe Biden encontrou maior eco nas urnas. O pragmatismo material acabou por decidir as eleições. As ameaças ao bolso dos eleitores foram bem mais credíveis do que as ameaças a um sistema democrático que a política convencional teima em tornar cada vez mais intangível para as pessoas. Já não se trata do emergir do populismo como o cárcere da liberdade democrática, mas antes da incapacidade do sistema atual de dar resposta às necessidades do cidadão comum, como a liberdade de sonhar com um futuro melhor.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico