Maioria dos europeus quer lei contra desflorestação, mas instituições preparam-se para marcha-atrás

Três quartos dos europeus considera que a entrada em vigor do Regulamento Anti-desflorestação da União Europeia (EUDR) deve estar entre as prioridades da União Europeia.

Foto
O Brasil é um dos países onde a desflorestação associada à produção pode fazer com que as mercadorias não possam ser vendidas à Europa Ueslei Marcelino / REUTERS
Ouça este artigo
00:00
07:48

Uma grande fatia dos consumidores europeus considera que o Regulamento Anti-desflorestação da União Europeia (EUDR) deve entrar já em vigor, proibindo a importação para a UE de produtos relacionados com o abate de florestas em todo o mundo.

No início de Outubro, a Comissão Europeia propôs adiar durante um ano a aplicação do EUDR, atrasando o início da lei para 30 de Dezembro de 2025, no caso de grandes empresas, e 30 de Junho de 2026 para pequenas e microempresas. Os ministros da UE já deram o seu acordo ao adiamento, faltando a posição do Parlamento Europeu, onde o Partido Popular Europeu (PPE) submeteu propostas de emenda para que o regulamento seja atrasado não um, mas dois anos, e tenha várias alterações.

A sondagem divulgada esta terça-feira pela Associação Natureza Portugal (ANP/WWF), a Associação para a Defesa do Consumidor (Deco), a Plataforma Troca e a Zero mostra que 94% dos portugueses querem a implementação do EUDR. O inquérito sobre políticas ambientais europeias, que teve mais de 14 mil respostas em sete países – Alemanha, Áustria, Espanha, Finlândia, França, Polónia e Portugal –, mostra mesmo que 73% dos europeus inquiridos (81% em Portugal) considera que a entrada em vigor do EUDR deve estar entre as prioridades da União Europeia.

“Estes dados mostram-nos que os consumidores estão cada vez mais preocupados e cientes sobre questões ambientais em geral”, nota Susana Correia, jurista da Deco dedicada às questões de sustentabilidade.

Para Pedro Horta, da Zero, os resultados do inquérito dão um sinal importante de que os consumidores querem (em particular os portugueses) uma regulamentação pública robusta, e o EUDR é uma peça-chave para moldar “o ambiente de consumo, que dita grande parte do que os portugueses consomem”. “É preciso evitar que os produtos venham parar à prateleira”, assevera.

Mais legislação, menos lobby

Os portugueses estão também entre os que mais estão de acordo com a regulamentação das questões ambientais: 85% dos portugueses afirmam ser a favor de leis mais apertadas, quando a média dos países se fica pelos 62% (e desce para 50% no caso dos finlandeses).

Numa altura em que muitos diplomas do Pacto Ecológico Europeu têm vindo a ser enfraquecidos, e em que, em geral, há “uma desconfiança do próprio processo de aprovação e de implementação das políticas ambientais”, Pedro Horta celebra estes dados que indicam que os cidadãos continuam, de facto, preocupados com as questões ambientais e muitos querem vê-las no topo das preocupações políticas.

Os resultados indicam, por exemplo, que os portugueses são “consistentemente mais propensos a considerar importante a protecção das florestas para lidar com as alterações climáticas”. Aliás, o contexto nacional, com a permanente ameaça de fogos florestais cada vez mais intensos, explica que tanto Espanha como Portugal sejam os países que consideram que o EUDR deveria proteger todos os tipos de floresta. Já os inquiridos de países como a Finlândia e a Polónia, onde há um grande peso do sector florestal, são os menos propensos a dizer que a aplicação do EUDR é “muito importante”.

Os cidadãos reconhecem, em geral, que os interesses económicos têm promovido desinformação, com 79% dos portugueses a responderem que tal é uma grande ameaça à aprovação e execução de uma legislação ambiental eficaz.

Cavalo de Tróia?

Esta semana, o Parlamento Europeu debruça-se sobre a proposta de adiamento da aplicação do EUDR por mais um ano. De acordo com as propostas de emenda publicadas no site do Parlamento Europeu, o Partido Popular Europeu quer aproveitar a votação para propor que o adiamento seja de dois anos e também para introduzir outras medidas para enfraquecer o diploma.

Na classificação de risco que define os procedimentos a seguir, explica Pedro Horta, o PPE propõe que seja criada uma categoria de “risco insignificante”, baseada em métricas que considera “muito estranhas”, na qual acabariam por ser classificados os Estados-membros da União Europeia – ou seja, reduzindo o âmbito de aplicação do EUDR no próprio solo europeu.

Uma proposta que, explica o activista, pode promover “métricas que podem favorecer a desflorestação”.

As matérias-primas em foco no regulamento são cacau, café, óleo de palma, soja, borracha, madeira e carne bovina, cuja exploração tem estado sistematicamente ligada a desflorestação e até mesmo a violações dos direitos humanos e dos direitos dos povos indígenas.

Consumidores desarmados

“Os consumidores estão cada vez mais despertos, mais interessados em tomar a decisão certa”, contextualiza Susana Correia, da Deco. Continuamos, contudo, a enfrentar algumas barreiras a um consumo sustentável, entre a falta de informação, o preço dos produtos e ainda as alegações falsas.

Apesar de vivermos num mundo de informação abundante, “a questão das cadeias de abastecimento é complexa”, e os consumidores precisam de mais orientação para compreender a pegada ecológica dos seus consumos.

“Quando falamos de desflorestação, é preciso recordar aos consumidores de onde vêem os produtos que consomem”, exemplifica Susana, sublinhando a dificuldade de compreender – ou mesmo calcular – o impacto directo das escolhas na desflorestação.

A associação de defesa dos consumidores tem vindo a trabalhar nos últimos anos para ultrapassar outras barreiras de informação sobre a origem dos produtos, incluindo campanhas contra o chamado greenwashing. Numa campanha da Deco, a associação apelava às empresas que “não se pintem de verde”, de forma a não defraudar as expectativas dos consumidores que querem dar o seu contributo e “fazem um investimento a achar que estão a comprar um produto mais sustentável”.

Pesar no bolso

E que papel podem ter os consumidores neste puzzle? “Estamos no final da linha, podemos comprar e consumir o que nos disponibilizam”, descreve Susana Correia. “Temos o poder de não comprar, não escolher. Mas sabemos que para uma grande franja da população portuguesa o que mais importa é o preço ajustado ao orçamento familiar.”

Outra questão importante é que muitos consumidores se vêem limitados às suas carteiras na altura de escolher produtos. A própria entrada em vigor de um regulamento como o EUDR poderá levar, num primeiro momento, a mudanças nas prateleiras. “Vai ter um impacto muito directo, podemos ter menos produtos pelo menos até algumas cadeias de abastecimento se reorganizarem”, pondera a jurista.

O que os consumidores lhe perguntam é se vai ficar tudo mais caro – e a resposta, reconhece Susana Correia, “é muito agridoce”. Mas há formas de fazer com que esta seja uma transição justa para os consumidores. Por um lado, as autarquias devem ajudar a promover produtos locais, promovendo cadeias de abastecimento mais curtas, por exemplo, com compras de produtos da vizinhança para o abastecimento das cantinas escolares ou de centros de dia.

Há também uma necessidade de foco grande no desperdício alimentar: “Se não desperdiçarmos, não é necessário produzir da maneira como estamos a produzir hoje”. A redução do consumo em excesso, aliás, é uma das formas de ter comportamentos ambientalmente mais conscientes e reduzir as contas.

Responsabilidades

De acordo com o EUDR na sua versão actual, a responsabilidade pela sustentabilidade da cadeia de valor recai sobre todos os seus elementos. Contudo, as emendas propostas pelo Partido Popular Europeu (PPE) pretendem remover os comerciantes do regulamento, recaindo as obrigações de verificação das cadeias de valor sobre os produtores.

“É mais fácil de controlar nos postos de consumo, se o comerciante não for responsável, pode-se tornar mais difícil”, explica Pedro Horta, alertando para as fragilidades desta proposta.

Os grandes operadores de comercialização, aliás, já estão preparados para implementar alguns aspectos do regulamento e vieram queixar-se, em Outubro, da ameaça de adiamento que pode prejudicá-los precisamente pelo facto de serem cumpridores.

De acordo com as estimativas da Comissão Europeia, citadas em comunicado das organizações, um atraso de um ano da aplicação da lei pode levar à emissão de 49Mt de gases com efeito de estufa associados à destruição de 2300 quilómetros quadrados de floresta – aproximadamente o tamanho do Luxemburgo. “Se adiarmos por um ano, estima-se que o equivalente a um campo de futebol de floresta possa a vir a ser afectada a cada minuto”.