A superdireita
É tentador subestimar a extrema-direita para serenar a nossa existência, mas como a reeleição de Trump nos EUA demonstra, ela está para ficar.
Uma aura está a preencher os espaços na malha do tecido social português. Iniciou-se subtil, quase intangível, como uma translúcida neblina de fim de tarde. Languidamente foi ganhando força, na espiral dos ventos agitados destes nossos tempos, do dia a dia complicado e desesperançado, daqueles que acham que vivem e não conseguem sair da cepa torta, ignorados e escarnecidos pelos bem-sucedidos, pelos que dominam a opinião dos jornais e das televisões, das escolas, universidades e partidos políticos. Muitos, assim, foram ganhando a revolta que foi acicatando os seus ódios. Cada sucesso de uns significando a derrota dos outros. Cada tese gerando a sua antítese. Alimentando uma lógica de clã, de nós contra eles, que acelera a discórdia e acentua a polarização.
O que está feito, feito está. Não dá para fazer a máquina do tempo voltar atrás e corrigir os erros do passado. O Ocidente está numa espiral descendente de progresso material e igualdade social. Uma parte do corpo político insistiu em aplicar as medidas da economia do individualismo e da insensibilidade, condenando segmentos inteiros da sociedade à estagnação ou ao desemprego. E quando já não havia mais gorduras para retirar ou reduzir, levou o emprego para o outro lado do planeta.
Este é o solo onde a extrema-direita floresce. O descontentamento é o que os seus representantes procuram, defensores incondicionais dos anseios dos deixados para trás, ignorando uma democracia que consideram elitista e depravada. Defesa acicatada, sem papas na língua nem vergonha na cara. Este é o teste decisivo do político ultramontano. Enquanto os políticos conservadores exibem certo decoro e contenção no discurso, resultado de anos de condicionamento e autocontrolo, nunca se comprometendo com nada, nunca exibindo a sua verdadeira opinião, o político ultramontano não tem inibições. O seu teste de algodão é dizer algo horrível e duvidoso com um sorriso no rosto, para agradar às suas multidões. Vai direto à jugular, onde estão os votos, dizendo aos quatro ventos e em todos os lugares aquilo que muitos sempre disseram em privado e outros tantos não têm coragem de admitir. Ou, por outras palavras, reproduz aquilo que muitos querem que seja dito. Essa é, na verdade, a sua maior vantagem. O seu superpoder. E o efeito é explosivo, ao mesmo tempo catártico e purgador. A cada palavra, há quem veja as suas convicções validadas; em cada sentença, as poucas dúvidas que pudessem ter ficam eliminadas. Estamos no território da política da emoção sem razão.
O objetivo sempre foi tornarem-se os heróis dos revoltados e descontentes, mártires no ciclo mediático e mártires nas mãos das elites instaladas. Alguém, nas redes sociais, congratula-se com a morte de Odair Moniz. Depois retira a publicação, como se fosse um acidente. Talvez lapso descontrolado de algum bárbaro, podemos pensar. Não, na verdade, apenas mais um ato premeditado, disfarçado de acidente. Um ato provocatório de um troll da internet, desenhado para escarnecer da morte de alguém e enfurecer a “esquerdalha”. Acrescente-se depois que é para condecorar o polícia, para atirar mais a matar, para nos livrarmos da “rascaria”. Depois chegam os atos de vandalismo, criminoso, que eles próprios acicataram com a sua retórica incendiária, para confirmar as suas nefastas convicções. E quando chegam as queixas-crime, ouro sobre azul. A “perseguição” das elites, que usam a justiça para, a seu bel-prazer, punir e intimidar, consuma o processo e entroniza os heróis.
Os atos de vandalismo da última semana foram, para a extrema-direita, o filme ideal para as suas legendas de desprezo e ódio e para a sua agenda de conquista de poder pela ignomínia. E já existem sondagens a demonstrar o sucesso das suas táticas. Estão numa posição confortável, à espera da oportunidade para continuar a dizer as “verdades” em ciclos sucessivos de indignação seguidos de vitimização. Depois, com paciência e um pouco de sorte, é ultrapassar em votos o centro-direita e ver quanto tempo dura o cordão sanitário, quando a tribo se começar a sobrepor à moderação.
É tentador subestimar a extrema-direita para serenar a nossa existência, mas como a nova eleição de Trump nos EUA demonstra, ela está para ficar. Portanto, aqui entre nós, é preciso ter coragem agora, desmascarar claramente as suas mentiras e evitar cair em falsas equivalências daqueles que, intencionalmente ou não, acabam por ajudá-los. Antes que seja tarde demais.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico