João Miguel Tavares contra Guterres sobre Israel e Rússia

Guterres não é um herói, nem estará sempre certo, mas desacreditar a ONU, como Israel se está a esforçar tanto por fazer, é o primeiro passo para uma Terceira Guerra Mundial.

Ouça este artigo
00:00
06:52

Começo por dizer que gosto de ouvir João Miguel Tavares (J.M.T.), que a crítica é às palavras e às ideias, não é à pessoa, por quem tenho a máxima consideração, nem é um aproveitamento da sua visibilidade como colunista e comentador, e também não tenho qualquer conflito de interesses para defender Guterres ou o seu quadrante político em Portugal, mas sim muita vontade de defender aquilo que ele representa – e o facto de ele ser português para mim é absolutamente irrelevante para esta argumentação.

Comecemos por Israel. É sempre preciso dizer que odeio o Hamas, não sou anti-Israel, nem, muito menos, anti-semita, que é a acusação deplorável que os israelitas fazem a qualquer pessoa que tenha coração e critique aquela carnificina, mesmo que não utilize sequer a palavra judeu, até porque, p.e., nos EUA 66% dos judeus estão contra este genocídio.

Não há precedente de algum país declarar qualquer o secretário-geral da ONU persona não grata. Até Israel veio dar o dito pelo não dito, dizendo que foram as palavras do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, mas não era a posição oficial do país: “pão para malucos”. Cerca de 50% da população mundial vive em autocracias e a ONU tem de fazer e promover o diálogo entre todos os países. Chamar a Guterres incompetente e fraco é uma opinião legítima, agora dizer que Israel tem razão em recusar a visita do representante máximo da ONU, criada para mediar a paz entre os povos, é gravíssimo, mais ainda, dando como exemplo a questão criminosa, atroz, cruel e desumana da UNWRA (United Nations Relief and Works for Palestine), que foi proibida/ilegalizada por Israel em mais um acto bárbaro contra a humanidade.

Israel acusa a UNWRA de envolvimento com o Hamas, em particular 12 dos seus profissionais. A UNWRA afastou estes profissionais para que as acusações fossem investigadas, e mesmo assim inúmeros países ocidentais retiraram o apoio à UNWRA deixando os palestinianos num sofrimento ainda maior do que já sabemos. Várias fontes independentes, até americanas, confirmaram que estas alegações não têm qualquer prova ou qualquer evidência, só que nós no ocidente nem nos apercebemos que estamos a ser totalmente manietados pela propaganda genocida de Israel que quer é matar à fome e à sede os palestinianos. Está mais do que provado p.e. com a empresa Meta (dona do Facebook e Instagram) que sonegam e bloqueiam todas as vozes críticas a este regime de Israel.

A UNWRA providencia apoio humanitário vital, como água, comida, etc., a 1,5 milhões de Palestinianos em Gaza, 900 mil na Cisjordânia, 493 mil no Líbano, 569 mil na Síria e 2,393 milhões na Jordânia. Proibir o trabalho da UNWRA é renegar os mais fundamentais dos direitos humanos a uma das populações mais sofredores do planeta. Isto seria o equivalente a, se houvesse uma acusação a 12 polícias de racismo, ainda que sem provas, assim considerássemos todos os polícias racistas e proibíssemos o trabalho da polícia. Faz algum sentido proibir e acusar de terrorista o trabalho da UNWRA? Para Israel faz, porque matar à fome dá menos nas vistas do que a terraplanagem que fizeram em Gaza, matando 17.000 crianças aos tiros e à bomba, mas indiretamente estima-se que será cinco vezes mais, ou seja, 85.000 crianças. Em que momento das nossas vidas é que perdemos a empatia por estas crianças inocentes e deixamos o nosso Governo ser cúmplice, já para não falar de tantos comentadores na televisão que defendem, e bem, os civis ucranianos, mas para eles, os palestinianos são apenas números... danos colaterais, de um direito à defesa até ao último palestiniano?

Com isto, todos estes palestinianos que já viviam em condições miseráveis, correm um risco enormíssimo de morrer à fome, graças às mentiras de Israel e a pessoas como J.M.T. que ainda não perceberam a propaganda e as atitudes genocidas do projecto sionista deste regime. Todas as ONG independentes e toda a ONU (inclui UNICEF, OMS, Acnur, etc) estão perplexas e revoltadas com esta atitude de Israel que é “só” mais um crime contra a humanidade, e que comprova a intenção de limpeza étnica a que se chama genocídio, em Gaza, e mais silenciosamente na Cisjordânia.

Se Guterres é impotente e fraco, quer dizer que Kofi Annan ou Ban Kin-moon fariam melhor? Não me parece. Ninguém pára Israel na limpeza étnica dos palestinianos, até Biden o maior apoiante do genocídio foi “apanhado” a dizer: "That son ***, Bibi Netanyahu, he’s a bad guy. He’s a bad f****** guy!", e ainda “liar”, citado no novo livro de Bob Woodward.

Agora vamos à Rússia. O que parece dominar a discussão é o grau de inclinação do corpo de Guterres no momento de cumprimentar Putin, e o abraço a Lukashenko que se vê claramente que é quase imposto pelo próprio muito mais corpulento do que Guterres. A linguagem corporal é relevante, mas o grande “crime” cometido por Guterres foi ter falado com estes dois ditadores e não ter participado na simultânea conferência de paz, pela Ucrânia, na Suíça. Não percebo muito de diplomacia internacional, mas diria que é feita muitas vezes de pessoas que se odeiam a cumprimentarem-se com sorrisos que escondem o que lhes vai na alma. Para J.M.T. isto foi gravíssimo, e foi a prova que ele tinha razão quando foi tão injustamente criticado por defender Israel na recusa de deixar entrar Guterres no seu país.

Alguns factos: Esta foi a primeira vez que Guterres se encontrou com Putin desde Abril de 2022, e penso ter sido apenas a segunda vez desde o início da guerra. Em Março de 2023, Guterres já fazia a terceira visita a Zelensky em Kiev, e por esta altura o organismo mais poderoso da ONU já se tinha reunido mais de 40 vezes a condenar a invasão da Ucrânia e com inúmeras condenações explícitas contra a Rússia, com votações na assembleia geral da ONU de 141 a favor da Ucrânia e 5 a favor da Rússia, com 35 abstenções. Mas a Rússia tem poder de veto no conselho de segurança.

Eu sou mesmo um aprendiz em geopolítica, mas para o “único” homem que consegue, pode e deve dialogar com as duas partes, com toda a teatralidade que a real politik da diplomacia traz, perguntem-se: é mais importante ser mais um, onde “todos” estão contra a Rússia numa cimeira de paz? Ou enfrentar o bully, o agressor, o imperialista pela frente, e tentar fazer a arte do possível com este megalómano e déspota, exigindo-lhe a paz, e uma paz justa? Onde é que o líder da ONU pode ser mais eficaz para tentar parar o sofrimento do povo ucraniano e almejar recuperar as fronteiras e a soberania da Ucrânia? Na Suíça ou na Rússia?

Guterres não é um herói, nem estará sempre certo, mas desacreditar a ONU tal como Israel se está a esforçar tanto por fazer é o primeiro passo para uma Terceira Guerra Mundial e para que cada país, à lei da força, possa fazer o que bem lhe apetecer, morram os milhões que morrerem. Mas como (ainda) não são os nossos filhos, achamos “graça” criticar a sempre imperfeita ONU, mas tão importante para a busca na paz no mundo, sem perceber que desacreditar as instituições é sinónimo de destruição das democracias.

Perdoe-me J.M.T., mas isto tinha que ser dito, não vale tudo para escrever artigos com “sucesso”.

As crónicas de Gustavo Carona são a favor dos Médicos sem Fronteiras

Sugerir correcção
Ler 21 comentários