Corvo: na ilha das aves a espiar o céu
No Outono, a ilha açoriana vê a sua população engrossar em quase mais um quarto, com a chegada de observadores de aves de toda a Europa, em busca de espécies raras, desviadas da sua migração americana
“Rapina, rapina, rapina.” O aviso ecoou junto do pequeno grupo que, até aí, tinha concentrado as suas atenções numa árvore próxima, poiso temporário de duas pequenas aves raras por aquelas bandas, e todos os olhares se voltaram para o céu, onde, ao longe, um grupo de estorninhos-malhados perseguia uma ave maior. As máquinas fotográficas dispararam e, poucos segundos depois, bocas e olhos abriam-se de espanto perante o que aparecia nos visores: uma ave nunca antes registada na ilha do Corvo, nos Açores. De facto, como se perceberia depois, uma ave sem registo oficial e reconhecido em todo o Paleárctico Ocidental (WP, na sigla em inglês), que inclui toda a Europa, parte do Norte de África e o Médio Oriente. Era um visitante do outro lado do Atlântico, um açor-americano.
O grito de alerta partira de Pedro Silva, um observador de aves do Pico (que fotografou este trabalho para a Fugas), que, tal como outros portugueses, se juntou, nos anos mais recentes, a um movimento que muitos estrangeiros repetem há 19 anos: visitar o Corvo em Outubro, quando a ilha se torna ponto de paragem de várias espécies provenientes da América do Norte, que, se tudo corresse bem, nunca deveriam ir ali parar, mas que são desviadas da sua rota por causa dos furacões e tempestades que se atravessam no caminho da sua migração para a América do Sul.
Apanhadas por ventos violentos ou “a fugir à frente das tempestades”, como explica Nuno Gonçalves, outro dos birdwatchers do Pico de visita ao Corvo, as aves acabam por ir parar aos Açores e a ilha mais pequena do arquipélago, com características muito próprias – desde logo a sua dimensão e o facto de ter poucas árvores –, tornou-se um local de paragem obrigatório para todos os que têm na observação de aves mais do que um passatempo. Há quem fale em “paixão” e, vendo o que fazem para poder juntar mais uma espécie à lista de tudo o que já viram, não é exagero.
O fenómeno “Corvo” entre os observadores de aves nasceu em 2005, quando o britânico Peter Alfrey decidiu ir até à ilha, para verificar algo de que já se suspeitava: que ela podia ser um excelente ponto para descobrir aves que não seriam visíveis em nenhum outro local do WP, uma das oito “ecozonas” em que o planeta está dividido, com uma lista de espécies associada a cada uma delas.
Quando aterrámos no Corvo, Peter Alfrey já tinha partido, mas por lá ainda continuava o francês Pierre-André Crochet (“PAC”, como é conhecido por todos), que é a pessoa com mais registos de espécies de aves avistadas em todo o WP — quando falámos com ele, eram 926, das 1350 espécies e subespécies possíveis, mas a estadia no Corvo ainda se prolongaria por mais uns dias, pelo que o número podia crescer.
Sentado no único restaurante aberto regularmente à noite na ilha, o Caldeirão, o cientista e birdwatcher recorda esses momentos iniciais do que se tornaria um hábito outonal a repetir anualmente. “O Peter veio de propósito, para tentar perceber se este seria um bom local para [aves] migradoras americanas. Outros já o tinham tentado antes, mas são precisos os ventos certos e o Peter teve muita sorte. Houve uma enorme tempestade, o [furacão] Katrina, que trouxe muitas aves”, recorda.
O entusiasmo entre a comunidade europeia de observadores de aves foi tal que PAC ainda voou para o Corvo nesse mesmo ano, por altura do Natal. “Vi uma pequena ave, que tinha permanecido aqui.” No ano seguinte, juntou-se ao primeiro grupo a aterrar no Corvo, juntamente com o belga Vincent Legrand, e os dois nunca mais deixaram de vir. “O primeiro grupo tinha ingleses, belgas e franceses, mas muito rapidamente se juntaram suecos e finlandeses. Também já tivemos alemães, austríacos, suíços, italianos, espanhóis, húngaros, polacos, checos, eslovacos…”, desfia.
Os portugueses, curiosamente, foram dos últimos a chegar, mas Vincent Legrand entusiasma-se com a sua presença. “É algo de que gosto mesmo. Termos, finalmente, conseguido envolver os locais, primeiro dos Açores e agora também outros portugueses, foi muito bom. Foi interessante ver como as coisas evoluíram ao longo dos anos”, diz o homem, que afirma ter “um emprego da treta”, para se poder dedicar àquilo de que verdadeiramente gosta: viajar em busca de aves, para as fotografar.
Manuel Rita, o impulsionador
E a evolução foi muita e tem decorrido de forma suave, graças, antes de tudo, ao anterior presidente da Câmara do Corvo Manuel Rita, de quem PAC e Vincent falam com um carinho especial. O autarca, falecido em Fevereiro de 2021, era também o dono do que era então o único hotel da ilha, o Comodoro. “Ele era a principal razão pela qual nós viemos e pela qual continuamos a vir todos os anos. Pelo que fez, primeiro pelo Peter, e depois por nós”, diz, com emoção, Vincent Legrand.
Foi um trabalho importante de explicar aos moradores do Corvo quem eram aqueles homens estrangeiros (agora já vão aparecendo mulheres, mas ainda são uma minoria), munidos de binóculos e câmaras fotográficas, que, de repente, quando os turistas habituais já tinham partido, chegavam à ilha e se espalhavam por todo o lado, saltando muros, percorrendo ribeiras e canadas, atravessando prados e restantes pedaços de terreno. Numa ilha com cerca de 400 habitantes, receber, de repente, quase 50 pessoas de uma vez, que não falavam a língua, mas precisavam de um sítio para dormir e para comer, era complicado.
A esse nível, dizem os dois birdwatchers que viajaram para o Corvo consecutivamente e sem paragens nos últimos 19 anos, as coisas mudaram muito. Houve uma altura em que tinham de jantar num armazém, onde lhes levavam comida propositadamente confeccionada para eles, e em que dormiam na casa de diferentes corvinos, por falta de alternativas. Agora, apesar de poderem surgir alguns constrangimentos, já não é assim, garante José Manuel Silva, o actual presidente da autarquia, que não podia estar mais satisfeito com a vinda anual destes turistas pouco usuais.
“Costumo dizer que este é um turismo fora de época, que apareceu sem termos de fazer fosse o que fosse, nem promoção, nada. São pessoas, na sua grande maioria, com algum poder de compra e, como têm esta paixão pelas aves, têm respeito pela natureza e o ambiente. E, além disso, eles organizam-se entre eles e as coisas acontecem sem nós termos de interferir”, diz.
Os primeiros birdwatchers começam a chegar no final de Setembro e há quem continue a aparecer ou a ficar pelo Corvo até meados de Novembro. A época, para estes visitantes, alargou-se, embora o mês de Outubro continue a ser aquele com mais probabilidade de avistamentos. A questão, explica Nuno Gonçalves, é que para ali vão os melhores entre os melhores dos observadores de aves; os que têm mais espécies registadas e para quem é também cada vez mais difícil juntar um novo nome à lista. Por isso, arriscar ir um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde do período mais intenso pode trazer o prémio de encontrar alguma espécie ainda mais rara do que as raridades que já por ali aparecem.
Os dias são sempre iguais e sempre diferentes, porque nunca se sabe o que se vai encontrar. Os observadores de aves inventaram uma geografia própria para ilha, com diferentes “pontos quentes” de observação espalhados pelo território, com alguns nomes em inglês surgidos entre os estrangeiros que primeiro ali chegaram. Por isso, às vezes há quem avise que determinada espécie foi avistada no Cantinho, em “Tennessee Valley”, no Fojo, nos “Cape Verde fields” ou, como aconteceu com o açor-americano, no “Lightouse Valley”. E ninguém estranha. O maravilhoso caldeirão, que atrai todos os turistas habituais que visitam a ilha, acaba por ser apenas mais um ponto de passagem, e apenas se se justificar.
WhatsApp, rádio e colunas de som
Nos primeiros anos, cada avistamento era comunicado por SMS para os telemóveis de PAC e do finlandês Marko, que depois reenviavam as mensagens para todo o grupo presente na ilha. Hoje está tudo diferente. Há um grupo de WhatsApp onde cada avistamento relevante é colocado de imediato, com o respectivo ponto de identificação do local, se for possível. E, para os locais onde a rede de telemóvel ainda não chega, comunica-se por rádio, que vários elementos do grupo transportam. Pequenas colunas portáteis para reproduzir o som de diferentes aves, na expectativa de atrair alguma que tenha sido avistada num determinado local, também integram a parafernália destes turistas, que não dispensam ainda binóculos e máquinas fotográficas com lentes potentes.
De manhã, os observadores distribuem-se pela ilha e pouco depois começam a chegar as comunicações, que fazem muitos deles correr de um lado para o outro, escolhendo as espécies que ainda não avistaram. A pequena dimensão do Corvo permite que cerca de 40 pessoas consigam cobrir praticamente todo o território acessível, algo impensável em ilhas maiores.
A grande maioria das aves registadas são passeriformes, pequenas aves coloridas do tamanho de pardais ou ainda mais pequenas, mas nem sempre. No passado, já apareceu por lá uma entusiasmante fragata ou uma águia-pesqueira, este ano há quem tenha juntado à lista de avistamentos bútios-calçados, um tartaranhão-cinzento-americano, um garçote-verde ou um tordo-de-faces-cinzentas.
Percorrendo, quase sempre, a pé todos os caminhos possíveis, os visitantes procuram não escorregar na lama ou tropeçar em pedras e raízes, e não destruir os pequenos muros de pedra, quando vão em busca das raridades que vão sendo comunicadas. Levam equipamento de chuva e comida para aguentar o dia, só parando quando a luz desaparece, para jantar e dormir.
Várias pessoas referem que o ano passado foi excepcional, em termos de avistamentos, mas este ano também está listado entre os melhores. Muitos conseguiram avistar espécies americanas como a mariquita-de-perna-clara, a mariquita-de-rabo-vermelho, a triste-pia, a mariposa-azul, a riscadinha, o sanhaço-d'asa-preta, a mariquita-azul-de-garganta-preta, a mariquita-azul, a mariquita-de-coroa-ruiva ou uma andorinha-das-chaminés-americana. Mas o açor-americano foi mesmo o que despertou mais emoções.
Felicidade e desânimo
O caminho até ao “Lighthouse Valley” – assim identificado porque dali se avista um pequeno farol – tinha sido feito pelo percurso mais “fácil”, ou seja, através de uma canada com pedras, lama, arbustos de hortênsias que é preciso afastar, muros de pedra que há que saltar e quatro prados que se descem sem dificuldade de maior, tentando ignorar que depois teremos de os subir. No pequeno grupo de cinco pessoas estava Frederico Morais, de 54 anos, que detém o recorde de mais registos de espécies de aves diferentes avistadas em Portugal – eram 457 quando o encontrámos, sentado junto ao caldeirão, à espera de um “táxi” informal que nunca mais aparecia e 461 quando deixou o Corvo, três dias depois. De todas estas estas espécies, 65 foram avistadas na ilha.
Diz que começou a interessar-se por aves quando viu, por acaso, um guarda-rios no Parque das Nações, em Lisboa. “Achei que era uma fuga de cativeiro, mas fui investigar e percebi que era uma ave da nossa fauna”, conta. Nunca mais parou de procurar saber mais e de percorrer o país e o mundo em busca de novas aves.
É o seu terceiro ano no Corvo, depois de uns amigos da Terceira o terem avisado que, se queria continuar a ser o n.º 1 na lista de observadores de aves em Portugal, não podia perder este local, caso contrário, seria rapidamente ultrapassado. Pedro Nicolau e Vasco Valadares, respectivamente os números 2 e 3 desta lista, também lá estão.
Naquele dia de sol, o aviso de que estaria uma mariquita-de-perna-clara no “Lighthouse Valley” levou Frederico a tomar a decisão de aproveitar a companhia e ir até lá, apesar de haver uma outra ave cujo registo ainda não tinha e que se encontrava num ponto de mais fácil acesso, a mariquita-azul.
O terreno desafiante que dá acesso a alguns dos pontos mais importantes de avistamentos no Corvo, as caminhadas constantes, os trilhos lamacentos e as pedras escorregadias da ribeira são um suplício para ele. “Fisicamente isto é muito duro e eu não gosto muito da parte física, da recruta”, admite. Mas também não quer perder a sua posição sem dar luta.
Por isso, naquele início de tarde enfrentou a canada, a lama, os muros, os prados descendentes e o dia já tinha sido dado como ganho quando num zimbro com vista para o mar azul que rodeia a ilha tinha avistado e fotografado a mariquita-de-perna-clara. E foi então que Pedro Silva gritou “rapina, rapina, rapina”.
As primeiras imagens no visor da câmara fotográfica mostravam claramente uma ave desconhecida, com riscas a atravessar-lhe o corpo. Nuno Gonçalves, que também ali estava, pegou no rádio e comunicou um avistamento de uma ave que não era ainda possível identificar, mas que pertencia claramente à família dos Accipiter (que inclui os gaviões e os açores) e que, secretamente, todos acreditavam ser americana. Houve um abraço de grupo de puro entusiasmo. Depois, Nuno, que é guia de montanha no Pico, partiu à frente de todos, em busca de um sítio onde fosse possível obter rede de telemóvel, para partilhar a imagem que copiara do visor da câmara de Pedro Silva, e indicar o ponto onde fora avistada a raridade.
Quando o resto do grupo chegou ao topo do caminho, já não havia dúvidas de que se tratava de uma absoluta novidade, um açor-americano. Não foi um dia fácil para PAC. O avistamento prévio e muito longínquo de uma rapina que não fora possível identificar levara-o a esperar quatro ou cinco horas naquela zona, na expectativa de perceber do que se tratava. Tinha abandonado o local um pouco antes, quando o grupo português avistou e fotografou o açor-americano. Algumas horas depois, no ponto identificado como Cantinho, a ave foi novamente avistada, outra vez perseguida por estorninhos-malhados e gaivotas-de-patas-amarelas, e mais uma vez o francês não conseguiu vê-lo de forma satisfatória. Durante algum tempo, nem sequer queria que falassem com ele, para se acalmar.
Por isso, na manhã seguinte, apesar da violência da chuva e do vento que não largaram a ilha durante toda a manhã, PAC, Vincent Legrand e o sueco Olof Strand voltaram ao Cantinho assim que houve luz do dia e esperaram. Poucas horas depois, a meio da manhã, o belga partilhava um curto vídeo que mostrava a tempestade, com o comentário irónico: “Só para mostrar o quão estúpidos somos, a enfrentar isto na esperança de ver o açor-americano.”
O esforço seria recompensado pela tarde, quando o tempo melhorou. A ave pousou num tronco, secando a plumagem e a potente lente de Vincent captou-a sem dificuldade. Depois disso, todos os observadores de aves presentes na ilha conseguiram ver esta absoluta raridade. E houve mesmo quem viajasse de propósito na segunda-feira para o Corvo, apenas com a esperança de o ver. Ele continuava por lá.
Um açor nos Açores
Nós já tínhamos partido. Até ao último momento, binóculos e câmaras fotográficas mantiveram-se a postos, não fosse alguma nova espécie ser avistada perto da aerogare. A passagem pela segurança é adiada até ao último segundo, não vá ser preciso sair do edifício e dar mais uma corrida até ali ao lado, para mais um avistamento. E até mesmo dentro do avião mais pequeno da frota da Sata, com apenas nove filas e capacidade para 37 passageiros (o único que consegue aterrar na curta pista do Corvo), há que espreitar pela janela, não vá alguma raridade estar a chegar nessa altura e deixar-se ver.
Para quase todos será um até para o ano. Por razões que vão além das espécies raras que ali se avistam. Vincent Legrand refere as razões que o levam, ano após ano, a regressar ao Corvo: “Primeiro, pela amizade. Segundo, pelas fotografias e, terceiro, pela esperança de ter uma nova espécie, para aumentar a lista.”
PAC garante que não se imagina a não regressar ao Corvo, apesar de admitir fazer estadias menos prolongadas — este ano ficou mais de um mês — ou alternadas, porque sabe que há outras aves que, na mesma altura, visitam países do Norte da Europa e que está a perder. Mas o Corvo é especial. “O tempo no Corvo é mais do que observação de aves. É estar fora do mundo. Quando se está aqui, podemos desligar-nos da enorme confusão em que o mundo está, porque isto é como uma pequena bolha. Por umas semanas estamos imersos num local em que tudo o que tens de fazer é ver aves, porque tudo o resto está tratado. Estamos num hotel, comemos nos restaurantes. Tudo o que temos de fazer é sair, caminhar, observar aves ou descansar. É um local muito especial. Mesmo que não sejas um birder, podes sentir isso.”
Nuno Gonçalves, que já nunca sai de casa sem levar os binóculos, chegou ali pela primeira vez há seis anos e espera regressar no próximo, com Vasco Valadares. Frederico Morais já reservou o hotel. Todos desejosos do que Frederico descreve como um “carrossel de emoções” – porque há que estar preparado para a possibilidade de não se avistar nada, por mais esforços que se faça. Mas também pode acontecer que, de repente, apareça um açor-americano. E como Pedro Silva diz, sorridente, referindo-se ao pequeno grupo português que primeiro avistou aquela ave: “Durante algumas horas, fomos as únicas cinco pessoas a ter visto, alguma vez, um açor nos Açores.”
O PÚBLICO viajou a convite do Município do Corvo