E se no Porto a malta começar a incendiar autocarros nos bairros municipais?

São muitos os fatores que concorrem, influenciam e determinam a degradação do espaço público, a dissolução moral, o comportamento criminoso de alguns e a vergonha de muitos nos bairros.

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O local de residência é sempre um lugar com várias dimensões. A minha mala de ferramentas teóricas ajuda-me a perceber que, no mesmo bairro, existe o espaço físico, o espaço simbólico e o espaço social.

Não tenho condições para, neste artigo, explicar com profundidade cada uma destas variáveis de análise, mas é fácil perceber que o espaço físico corresponde à localização, às condições boas ou más do edificado, à existência de espaços públicos, aos acessos, à iluminação, ao conforto, à comodidade e à segurança das casas, à existência ou não de equipamentos sociais de qualidade. O espaço físico é o ambiente construído.

Já o espaço social é o tipo de relações que se estabelecem nesse bairro em função do capital social, cultural, económico e escolar dos seus moradores.

Por sua vez, o espaço simbólico corresponde à imagem que tens de ti próprio por viveres num determinado bairro, à imagem que os de fora do bairro fazem de ti e à forma como tu reages e entendes o teu modo de vida. O simbólico são as categorias mentais através das quais percecionas e organizas o mundo.

Os territórios estigmatizados, ou de má fama, agora designados Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), são uma construção social. Resultam do abandono do poder político ou de políticas públicas neoliberais e desajustadas.

Os bairros críticos existem porque, muitas vezes, os moradores utilizam estratégias erradas para lidarem com essa estigmatização. Como, por exemplo, a ideia de que sofrem porque a culpa é deles e não há nada a fazer; a ideia de que vivem na miséria e na exploração diária porque não tiveram sorte e não vale a pena lutar de forma organizada; a ideia de que a política e os políticos são todos iguais; a ideia de que a participação coletiva não gera mudança social nem mais igualdade de oportunidades nem acesso a recursos culturais, sociais e simbólicos ou a mais justiça social na repartição do rendimento e de que também não leva à construção de equipamentos coletivos e a serviços de qualidade ou à dignificação de salários e do parque habitacional nem a melhores transportes.

Todo este pensamento interiorizado nos moradores dos bairros, de que a luta política não resolve e de que armar estrondo e aparecer na comunicação social é que é eficaz, permite que o sistema das políticas sociais do capitalismo faça o seu caminho. E permite que faça um caminho com cada vez menos investimento público nesses territórios. E com a agravante de ainda criminalizarem a pobreza.

Ou seja, o Estado retira-se, o funcionamento das instituições de caridade reproduz este estigma e a ausência de abordagens públicas multidisciplinares e integradas o que faz? Chuta a culpa do comportamento desviante para a responsabilidade individual. Quase como se dissesse aos cidadãos: "Vocês vivem nesse bairro e, por viverem nesse espaço habitacional, reagem à discriminação negativa e podem tornar-se pessoas perigosas, podem causar insegurança, podem criar má imagem, podem pôr em causa a ordem pública e a coesão social". Ou como se ainda lhes dissesse: "Vocês constituem um problema que é preciso resolver, o capitalismo precisa de paz social para acumular lucros sem sobressaltos".

Então, como é que o poder político resolve tudo isto? Com castigo, com repressão, utilizando aquele padrão moral do "quem faz asneiras deve ser castigado" ou do "deve ser castigado o comportamento desviante que não cumpre a lei" ou, ainda, do "merece castigo o pobre que foge do trabalho mal pago e precário" (que, por acaso, não foge e até trabalha, mas, mesmo assim, continua a viver nestes bairros e continua pobre). O poder político resolve ainda através do outro padrão moral do "merece castigo o estrangeiro que ameaça romper com a nossa cultura e identidade e esgota os nossos recursos de assistência".

Em suma, as medidas políticas adotadas refletem o divórcio entre o espaço planeado e o espaço sentido, vivido e experimentado pelos cidadãos. E é este o caldo cultural explosivo que pode levar a incendiar autocarros também no Porto, como se viu nos últimos dias na Grande Lisboa. A privação material e o sofrimento social por causa da má fama geram indignação.

É preciso perceber que existem muitos fatores que concorrem, influenciam e determinam a degradação do espaço público, a dissolução moral, o comportamento criminoso de alguns moradores, a vergonha de muitos residentes, a revolta despolitizada e o espírito de inferioridade causado pelo estigma.

A desordem social e moral que se vive nos bairros municipais favorece os mecanismos ocultos de dominação, que o Estado fomenta através da desregulação do mercado de trabalho, da privatização e consequente aumento dos preços de bens e serviços essenciais, como a água, a eletricidade, os transportes, as comunicações, a habitação ou a saúde. Ou, até, através da contração gradual da Segurança Social pública ou de uma resposta penal musculada aos problemas sociais ou com a responsabilização pessoal e individual pelo fracasso ou mérito dos cidadãos.

Vejamos: o atual Governo não renovou o programa Bairros Saudáveis. Com essa decisão política, demonstrou falta de sensibilidade social e desconhecimento do que estava a ser feito de positivo nos territórios socialmente vulneráveis.

Não tenho dúvidas de que, projetos como o Bairros Saudáveis, depois de avaliado o seu impacto positivo sobre a comunidade, devem ter continuidade, com autonomia financeira e com planeamento que garanta estabilidade e segurança para os seus trabalhadores. Respeitar os moradores dos bairros é deixar de brincar às experiências de projetos-piloto com programas financiados e com estratégias de combate à pobreza.

Em suma, precisamos de outra política. Precisamos de mais investimento público nestes territórios. Precisamos de ouvir, de respeitar e de envolver estes moradores, de apoiar e incentivar de forma consistente a organização coletiva dentro dos bairros, de dignificar as carreiras salariais dos técnicos de intervenção social e de dotar com mais meios e recursos os projetos de intervenção comunitária.

Se tal não acontecer, arriscamo-nos a ver mais situações idênticas às que se têm vivido na Grande Lisboa nos últimos dias.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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