A instabilidade ortográfica ameaça um património identitário
Os próprios alunos reagem criticamente à nova ortografia decretada não só pela falta de lógica em algumas situações, como também pelo facto de em lugar de evitar os equívocos os fomentar.
Assistimos de contínuo à banalização do impensável e do absurdo não só na política, externa e interna, mas também na cultura, sendo sobre este último aspecto que me debruçarei.
A Academia das Ciências é um exemplo flagrante, se lembrarmos a forçada implementação do Acordo Ortográfico (AO) de 1990, que persiste intocável apesar das suas “contradições, controvérsias e erros” que os próprios mentores admitiram. Somos com efeito confrontados com uma instituição que em lugar de pugnar sempre, sem tréguas, pelo Conhecimento, o desfigura e desvirtua, com um à-vontade chocante, e penso, de novo, no AO. A inércia e a indiferença actuais perante a instabilidade ortográfica, causada pela imposição do famigerado, nomeadamente no ensino, pondo em causa a sua qualidade, são atitudes intoleráveis, tanto mais que envolve um património identitário.
Mas esta Academia não está só, porque sofrendo do mesmo mal, acompanham-na duas associações de professores de Português que, na sua estreita cumplicidade com o Ministério da Educação, respiram livremente perante o aviltamento da ortografia da língua portuguesa, indiferentes ao sentido de responsabilidade que a sua função exigiria. Refiro-me à APP (Associação de Professores de Português) e de forma mais crítica à Anproport (Associação Nacional de Professores de Português) porquanto, ao invés da APP, fervorosa apoiante do AO, desde o primeiro momento, a Anproport propôs, entre os seus objectivos primeiros, lutar contra o Acordo Ortográfico, o que nunca aconteceu.
Foi sempre para mim incompreensível a aceitação acrítica da “Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” (1990), texto único que os defensores do AO invocam, muitos dos quais sem nunca o terem lido e creio que se alguns o fizessem corariam de vergonha perante os disparates. A própria Academia continua estranhamente a aceitar a argumentação aí desenvolvida, não discutindo com académicos críticos, antes pactuando com a ligeireza, a ignorância e até o ridículo evidenciados no texto. A “teimosia lusitana” em manter as consoantes c e p não pronunciados, a defesa das crianças cuja memória é prejudicada pelo esforço em reter as tais consoantes ou “a pronúncia” como “critério científico” são alguns dos exemplos anedóticos que aí encontramos, num testemunho trágico sobre o que se perspectiva relativamente ao estudo e ao conhecimento.
Os próprios alunos reagem criticamente à nova ortografia decretada não só pela falta de lógica em algumas situações, e lembramos o “Egito e o egípcio”, como pelo facto de em lugar de evitar os equívocos os fomentar. “Pêlo”, por exemplo, perdeu o acento e tornou-se igual a «pelo», o mesmo acontecendo com o verbo parar na 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo que, tendo perdido o acento, se confunde com a preposição “para”, “retractar”, do latim retractare, tem novo traje, distorcendo a sua etimologia, ao escrever-se como “retratar” (fazer um retrato), “espectador” tornou-se “espetador” e o ridículo é tal que houve editoras que, mesmo cumprindo o AO, decidiram, neste caso, usar sempre “espectador”.
Não é de mais repetir as palavras do Professor António Emiliano, da Universidade Nova, a propósito da “aprendizagem de qualquer ortografia […] que não é tarefa fácil para ninguém nem é suposto ser: a função de uma ortografia não é nem facilitar o ensino da escrita nem reflectir a oralidade; a ortografia serve para codificar e garantir a coesão da língua escrita normalizada de uma comunidade nacional.” Depois da implementação forçada do AO, à revelia da vontade dos portugueses (lembre-se também os 25 pareceres contrários) tudo tem acontecido como se a ortografia fosse a representação de um espectáculo em que cada um escreve para o “lado que lhe dá mais jeito”, como galhofeiramente afirmou Pedro Santana Lopes. Compreender-se-á em parte a sua boa disposição porque este AO foi, na verdade, cozinhado e pretensamente discutido entre muita galhofa e gargalhada, como testemunham as actas da sua discussão, na Assembleia da República, na qual participou também Pedro Santana Lopes.
Este gosto pelo lúdico boçal, retrato da crescente falta de cultura e reflexo de uma crescente infantilização, expõe-se também exuberantemente na Escola através de muitos manuais, nos quais já encontrei, por várias vezes, a convivência entre “espetáculo” e “espectador”, e “espetáculo” e “espetador”, neste último caso em sintonia com o disposto no AO, tropeçando os alunos no “espetador”, pela estranheza: “Espetador?”, perguntam. Confirmando ainda o que escrevi, no início deste parágrafo, deixo-vos dois exemplos elucidativos que retirei de um manual do 2.º ciclo, de História, disciplina que, a par de Geografia, se encontra em vias de extinção. A propósito do estudo da invasão e conquista da Península Ibérica pelos muçulmanos do Norte de África, no séc. VIII, os autores apresentam várias questões de escolha múltipla, onde a escrita obviamente não intervém, substituída por uma cruz. Transcrevo o primeiro exemplo: “Aos muçulmanos do Norte de África que invadiram a Península Ibérica os cristãos chamavam: a) Alás, b) Mouros, c) Andaluses, d) Moçárabes”; e o segundo: “Os muçulmanos também deram a conhecer processos de rega até aí desconhecidos: a) a tia, a picota e o açude; b) a prima, a picota e o açude; c) a sogra, a picota e o açude; d) a nora, a picota e o açude.” Posso dizer que algumas alunas, perante o primeiro exemplo, acharam que a colega muçulmana da sua turma “ia ficar triste porque se sentiria gozada”, reagindo também com estupefacção ao absurdo de “tias, primas e sogras”. “O que é isto?", foi o que perguntaram incrédulas com o que viam escrito. Se os autores pretendiam suscitar o riso, nesse doentio e exasperante lúdico, a reacção foi precisamente a inversa porque as crianças não são imbecis, se bem que desde a reforma de 2003 se tenha vindo a actuar para que assim aconteça, prejudicando o seu desenvolvimento e perigando o seu futuro.
Num ambiente tão propício ao riso e à brincadeira, nem a Academia das Ciências escapa, alastrando o pântano cultural, lamentavelmente perante a nossa indiferença colectiva.