Domingos Pinho (1937-2024), o pintor e a escola

Diria que o Domingos Pinho pintava porque era pintor, mas também pintava porque era professor.

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Quando estou a regressar ao Porto no comboio 129 (Alfa das 20h), depois de participar na inauguração da exposição O Desenho na Academia (comemorativa dos 188 Anos da Academia Nacional de Belas Artes), sou informado da morte do Domingos Pinho. Apesar de saber que o Domingos se encontrava doente há já algum tempo, não esperava por este rápido desenlace. Nunca ninguém está preparado para a notícia da morte de alguém, especialmente a de um amigo e colega.

Nutria muita simpatia, respeito, e tinha uma relação de amizade com ele, tendo-o conhecido nos anos 70 do século passado nas sessões do Cine-Clube que passavam no Cinema Batalha (nesses anos o trabalho de Júlio Pomar estava censurado pela PIDE e escondido de todos) aos domingos de manhã e segundas-feiras à tarde (julgo que a paixão que o Domingos Pinho tinha pelo cinema viria a ser muito importante, também, para a sedimentação das suas opções estéticas enquanto pintor – que viriam a estar muito presentes no imaginário do seu atelier). Recordo-me, do Batalha, e na nossa qualidade de cinéfilos (uma forma de se defender a liberdade), dois grandes filmes projectados – A Palavra, de Carl Dreyer, e 8 ½ de Federico Fellini, entre muitos outros.

Alguns anos mais tarde reencontro-o nas Belas Artes, em 1978, já como colega (o Domingos entrara em 1973), primeiro na Escola, e depois na Faculdade (quando a Escola é integrada na Universidade do Porto). E, como colega, sempre o admirei porque conseguia um equilíbrio espantoso entre a função de artista e a função de docente. Não é que seja rara a conciliação destas duas qualidades, mas o Domingos tinha sempre uma atitude de grande exigência para si mesmo e para os outros.

Homem leal e de diálogo estava sempre receptivo a ouvir, mesmo em contexto de potencial divergência, embora nunca prescindindo das suas próprias convicções. O seu exemplo de professor de excelência na FBAUP permitiu-lhe preparar muitos alunos a gostarem de arte e a praticarem o exercício artístico apaixonado, e não se compadecia com facilitismos ou com entendimentos mais ou menos fugazes acerca da possibilidade do ensino artístico na escola de arte. O Domingos Pinho, tal como eu, acreditava na Escola de Arte – em que era possível não um ensino que conciliava a qualidade espontânea de se ser artista, mas antes um ensino que permitiria a criação das condições para o ser-se. Aliás, seria fundamental a sua responsabilidade em assumir a leccionação de uma unidade curricular fundamental do 1.º ano – Iniciação à Pintura, que seria muito marcante para várias gerações de estudantes. E que, consensualmente, seria um trabalho de verdadeira missão para o futuro.

Estudioso do realismo europeu do século XX, Domingos Pinho, que começou a pintar aos 15 anos de idade, percorreu um caminho artístico feito de muitos caminhos, isto é, adoptando várias linguagens ao longo do tempo, desde a geometrização até ao expressionismo, passando pelo abstraccionismo, hiper-realismo e pintura metafísica. A partir de 1970, Domingos Pinho irá construir uma narrativa artística muito legitimada pela tradição da pintura ocidental, onde a prática da pintura – sempre muito coerente nos seus propósitos de grande intransigência – vai fazer culminar um discurso que é simultaneamente comprometido com o realismo e a natureza cénica, absolutamente experimental, e que adopta a questão da representação como princípio constitutivo de imagens associadas a referentes e códigos visuais, e que permite ainda corporizar em permanência a presença de um investigado na obra. Domingos Pinho acrescenta à natureza da sua pintura o paradigma de que o mistério pode e deve habitar a pintura. E, no acontecimento de um habitar sem lugar, mas em passagem, em transição, e em fronteira – a sua pintura é a de um legado de grande invenção e modernidade.

Pintura muito oficinal a de Domingos Pinho, e que encontra no atelier o sentido de um lugar magistral de laboratório e de experimentação. Para além do seu atelier no Porto, possuía uma casa-refúgio-atelier no Gerês, em S. João do Campo, para onde se deslocava quando o tempo lhe permitia, e aí realizava um exercício de grande ascese e recolhimento, e onde a sua pintura, aliás, ficaria marcada por um dos momentos mais marcantes e introspectivos.

A pintura de Domingos Pinho é a pintura da Escola do Porto. Pintor exímio de uma expressão hiper-realista, que lhe permitiria também uma espécie de exercício de comunicação para a sua função docente. Diria que o Domingos Pinho pintava porque era pintor, mas também pintava porque era professor. E mais, a recepção da sua pintura não pode ser desligada da sua acção de docência, nem o inverso, pois, para a compreensão da sua pedagogia é essencial a prática da sua pintura Houve, então, e muito subliminarmente, como que uma espécie de osmose, transformação, ou contaminação – responsável pelo crescimento das suas duas principais dimensões, a de dar a fazer, e a de dar a ver, respectivamente, a de ser professor e a de ser pintor. Para além do pintor e da escola, Domingos Pinho participou em acções muito meritórias ligadas à cidade do Porto. Nomeadamente, seria um dos fundadores, em 1963, tanto da Cooperativa Árvore, como da revista de arte e letras, Paisagem.

Domingos Pinho faleceu a 17 de Outubro de 2024. Deixa-nos um legado imprescindível para o entendimento e a investigação do que foi e do que é a Escola do Porto. Até sempre, Meu Amigo.

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