Literacia para a Democracia – um importante caminho a percorrer

Se os cidadãos não perceberem que são parte ativa e totalmente interessada na dinâmica de funcionamento da gestão dos interesses coletivos provavelmente sentirão um certo alheamento.

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O Mecanismo Nacional Anticorrupção (Menac) publicou recentemente dois importantes documentos relativos à dinamização de projetos educativos e formativos nas áreas da cidadania, integridade, transparência e prevenção da fraude e da corrupção. O Plano de Formação para a integridade, a transparência e a prevenção da corrupção 2024-2025, em junho, e, a 21 de agosto, a Recomendação 8/2024.

No primeiro, focado essencialmente na formação de dirigentes, técnicos e funcionários da Administração Pública, é apresentado um conjunto de objetivos associados à reflexão e aprofundamento de conceitos tão importantes como a transparência e a integridade, enquanto pilares centrais de organização e funcionamento da sociedade e da gestão das organizações. E, a par deles, a necessidade de se reforçarem os cuidados preventivos relativamente a áreas e fatores de risco de fraude e corrupção.

Neste documento atribuem particular relevância ao envolvimento das entidades do setor público que têm promovido formações nestas temáticas, nomeadamente o Instituto Nacional de Administração, o Instituto de Gestão e Administração Pública, a Direção-Geral da Administração e do Emprego Público, a Fundação para os Estudos e Formação nas Autarquias Locais, bem como as estruturas com funções idênticas nas regiões autónomas de Açores e Madeira.

No segundo, recomenda ao Governo que aponte critérios referenciais e conteúdos curriculares, no âmbito da educação para a cidadania, relativamente aos mesmos conceitos anteriormente apontados, e que se traduzam em bases de estudo e reflexão a trabalhar com os alunos dos diversos ciclos de ensino, desde o básico, passando pelo secundário, até ao politécnico e universitário.

Através destes dois instrumentos, o MENAC procura promover, no exercício das suas competências funcionais, as componentes formativa e educativa para a ética e integridade, tanto nas organizações, como na sociedade em geral. E em ambas as componentes faz todo o sentido trabalhar e refletir sobre estes conceitos de um modo permanente.

Do conjunto das medidas agora adotadas, creio ser particularmente importante o foco relativamente às que se encontram vertidas no documento mais recente, ou seja, na componente da educação para a cidadania, dada a sua relevância para o fortalecimento da democracia e do seu funcionamento. A literacia para a democracia.

A democracia, como sabemos, é o modelo de organização política que assenta e emana do coletivo. As decisões que interessam a todos decorrem, ou devem decorrer, do envolvimento e da vontade, livre e responsável, de todos. Por isso, a composição das estruturas organizativas que exercem os denominados poderes políticos — para gerir e conduzir o supremo interesse de todos, em nome de todos e de acordo com a vontade de todos é configurada a partir de escolhas dos cidadãos, através de processos eleitorais.

E será precisamente este o ponto central a partir do qual deverão ser trabalhados os conteúdos formativos da literacia para a democracia.

Se os cidadãos não forem possuidores de um conjunto mínimo de ferramentas adequadas que lhes permitam avaliar, com critérios objetivos, as várias propostas que lhes forem apresentadas aquando das campanhas eleitorais, ficam mais vulneráveis à possibilidade de “embarcarem” nos discursos mais envolventes, mais simpáticos, mais cativadores. Este é também o contexto mais adequado aos demagogos.

Se os cidadãos não perceberem que são parte ativa e totalmente interessada na dinâmica de funcionamento da gestão dos interesses coletivos na gestão do Estado provavelmente sentirão um certo alheamento e até algum distanciamento relativamente a todas estas questões.

Porém um estado de coisas como o descrito não é, nem será nunca, da responsabilidade dos próprios cidadãos.

Ninguém nasce ensinado, como sabemos. Por isso, não é expectável que as pessoas procurem informar-se sobre questões desta natureza. Sobretudo quando não apresentam uma relação direta com as preocupações das suas vidas particulares e familiares. Ou se têm uma certa perceção de que lhes estão muito distantes ou mesmo que não lhes dizem respeito.

Tem de ser o Estado e as suas estruturas, numa lógica de política pública para a promoção e aprofundamento da integridade e cidadania de literacia para a democracia, como estamos a ver a promover projetos formativos e educativos que permitam essa importante aproximação de cada cidadão às questões da cidadania, de participação mais envolvida na vida e na gestão do interesse coletivo. De participação mais informada, clarividente e responsável nos momentos eleitorais de escolha das lideranças políticas, e de exigência crítica no acompanhamento da execução das políticas sufragadas.

E nos últimos anos creio mesmo que desde abril de 74, o que não deixa de ser surpreendente as estruturas formais de ensino (com exceção dos cursos de direito, por razões naturais próprias do conteúdo formativo) não têm trabalhado de forma consistente estas temáticas, nem abordado algumas questões centrais que estão associadas ao modelo democrático e aos deveres e responsabilidades de cada um no seu funcionamento.

E há um conjunto de questão tão importantes relativamente às quais seria necessário promover estes projetos educativos. De entre essas questões, destacamos as seguintes:

  • O que são, e que importância têm, a ética e a integridade na vida coletiva?
  • Porque é importante respeitar os outros?
  • O que é e para que serve o Estado?
  • Como se estrutura e gere o Estado?
  • O que são e qual a função dos partidos políticos?
  • Porque votamos e porque é importante que o façamos?
  • Porque pagamos impostos?
  • O que são, e que utilidade têm, a ética e a integridade na sociedade?
  • O que são conflitos de interesses na vida pública?
  • Qual a importância do controlo e prevenção dos conflitos de interesses e da transparência na vida pública e nas organizações?

Ninguém nasce ensinado, é certo. Por isso, para termos cidadãos cada vez mais bem preparados e atentos, para uma participação democrática mais efetiva e responsável, é crucial que as estruturas formais do sistema de ensino, a todos os níveis, trabalhem estes temas de forma ajustada às idades e aos âmbitos das formações que disponibilizam, numa lógica de reforço da qualidade da democracia através da participação cidadã de cada um.

Afinal de contas, o que está em causa é demasiado importante para ser tratado de forma tão ligeira.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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