O Coração Ainda Bate. Sem prazo de validade
Inês Meneses e o que entra na equação de um amor para a vida.
Acabo de ver mais uma daquelas notícias enternecedoras de um homem e de uma mulher, Isaac e Teresa, que estiveram casados 69 anos e morreram no hospital de mãos dadas, ela, primeiro, ele, pouco tempo depois. São histórias de consenso universal, que arrancam sorrisos ternos ao mais empedernido leitor. Deste lado perguntamos: “tanto tempo?! Como conseguiram?”. Com cedências. Alguém se anulou aqui e ali. Ambos, talvez. Um mais do que outro, mostra-nos o quotidiano.
Tão evidente como o aquecimento global, é hoje o amor precário, o amor com fendas, o amor descontinuado. Nós, os passageiros do amor, tornámos o amor passageiro. “Eterno enquanto dura”? Dura menos hoje. Será porque não cedemos? Talvez. Porque os prazos se encurtaram e a validade grita na próxima esquina. Não me tornei cínica, apenas tento espreitar para dentro do que se esconde na vida a dois.
Não tenho dúvidas de que muitos destes casamentos “para sempre” esconderam momentos muito tristes, curvas desastrosas em que alguém conseguiu agarrar firme no volante, no último segundo. Talvez o amor seja esse trajecto por um longo caminho sinuoso onde o perigo parece espreitar tantas vezes. E pensamos: “vamos em frente ou ficamos por aqui?”.
O que mudou realmente na forma como vivemos o amor foi perceber que não seríamos socialmente punidos por mudar de parceiros, que a brevidade da vida nos empurra para algo urgentemente próximo da felicidade, que as mulheres que estiveram silenciadas no lar durante décadas vieram para a rua reclamar o seu lugar. Os homens reorganizaram-se. Ajustam-se. As mulheres esbracejam porque perceberam que podem. Saíram da claustrofobia quotidiana para o mercado de trabalho, para o restaurante, para as noites em que são felizes a dançar. Se não estão felizes num casamento, percebem que podem mudar. Que, ao contrário das suas avós ou mães, não vão tolerar infidelidades, mentiras, crueldade, misoginia. Muitas mulheres, as que podem, partem para novas relações. Os homens também, claro. Quando se sentem seguros. Mas eles já sabiam, antes, que nunca teriam o dedo apontado sobre eles.
Quando me detenho numa notícia destas, de um casamento de décadas, pergunto-me, hoje, se aquela mulher ficou silenciosa sobre o que lhe doía ou se foi ele a tolerar o que parecia inconcebível. No amor aguentam-se coisas sem explicação. Normalmente é depois da relação acabar que encontramos as respostas todas: já lá estavam desde sempre, mas não as queríamos ver. Fechamos os olhos mesmo ao que parece evidente.
Com a idade aprendemos a ceder de forma razoável. Há razoabilidade na cedência? Claro que há. E não acreditem em quem vos disser que se é amor não tem de haver cedências. Nascemos e estamos a ceder: ar, espaço, tempo. Quando decidimos partilhar tudo isto com alguém, claro que temos de ceder.
Um casamento de 69 anos não se terá feito sem cedências, mas é admirável, mesmo não sabendo as dores que terá custado a cada um deles.
A idade e o desgaste que a vida me proporciona fazem-me hoje olhar para o amor de forma muito diferente: é cuidar, sim, não deixando a admiração de lado.
Quando penso hoje no amor, consigo concentrá-lo nas imagens de Hana, a enfermeira de O Paciente Inglês, lendo à cabeceira do seu doente desconhecido. Há uma entrega e dedicação que fazem daquela história um momento fora de série. Apeteceu-me empregar esta expressão “fora de série” para descrever o amor. É isso, o amor é fora de série mas temos de saber mantê-lo em contínuo, cedendo espaço e tempo ao outro. As cedências de hoje não podem ser tolerar segredos e mentiras, mas ceder espaço e tempo sem nunca pôr em causa a identidade do outro. Estarei a ser demasiado romântica?
Na história de Isaac e Teresa, que foram a enterrar no mesmo dia, diz-se que estiveram sempre apaixonados até ao fim. Precisamos cada vez mais de aprender como se vive um amor sem prazo de validade.
O coração ainda bate.