Literacia constitucional, sem paternalismo
Conhecer a Constituição é um dever cívico. Mas como fazê-lo? Bastará fornecer a todos uma edição de bolso do texto constitucional para que se conheça a Constituição?
No ano em que se celebram 50 anos de democracia e 48 anos da Constituição da República Portuguesa (CRP), importa refletir sobre a importância da literacia constitucional.
A literacia constitucional, na qual incluo também a literacia cívica e política em sentido amplo, é particularmente relevante num contexto global de desencanto democrático. Surpreendentemente, porém, há quem argumente que a literacia constitucional pode ser perigosa, pois poderá alimentar fetichismos ou idolatrias constitucionais, colocar expectativas irrealistas no papel dos tribunais, ou até fomentar o populismo constitucional.
Na esteira de A. Pope, será verdade que “a little learning is a dangerous thing”? Ainda que reconheçamos alguns dos perigos da sacralização da Constituição, respeitosamente discordamos desta perspetiva. A Constituição é o estatuto jurídico fundamental de uma comunidade política, que abraça o pluralismo político e reconcilia divisões histórico-culturais. Podemos imaginar a Constituição como as paredes-mestras de um edifício, ou como a “casa das máquinas” (Gargarella) de um navio. Conhecê-la, pelo menos nos seus traços essenciais, é um dever cívico. Mas como fazê-lo? Bastará fornecer a todos uma edição de bolso do texto constitucional para que se conheça a Constituição?
Infelizmente, não é assim tão simples. Desde logo, mesmo em países que possuem uma constituição codificada – como é o caso de Portugal – existe constitucionalismo para além da constituição escrita, tal como as convenções constitucionais, os costumes constitucionais, entre outras manifestações de constitucionalismo informal. Em acréscimo, da mesma forma que outras as áreas do saber têm uma espécie de fechamento da linguagem, um jargão próprio difícil de descortinar para todos os não especialistas, também as constituições não são imunes a essa dificuldade. Afinal, o que significa que têm valor reforçado as leis que “sejam o pressuposto normativo necessário de outras leis” (artigo 112.º, n.º 3 da CRP)? Ou que o regime dos direitos, liberdades e garantias se aplica aos “direitos fundamentais de natureza análoga” (artigo 17.º da CRP)?
A leitura e interpretação dos textos constitucionais é complexa, em especial tendo em conta que muitas das constituições aprovadas no pós-guerra são formalmente extensas e substantivamente densas. Além disso, a Constituição necessita de ser lida em conjunto com a interpretação que dela é feita pelos tribunais. E como decifrar a linguagem hermética dos intérpretes-aplicadores da Constituição?
Todos os dias se ouvem pequenos atropelos à Constituição. O exemplo mais lapidar é a afirmação de que o Governo é eleito ou a referência à “eleição do primeiro-ministro”. Ora, como resulta do artigo 187.º da CRP, o Governo não é eleito. Possui legitimidade democrática indireta, ou seja, é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais das eleições legislativas. Uma possível explicação para a referência generalizada à “eleição do Governo” é a associação que se faz entre legitimidade política e eleições.
Outro exemplo é o de se afirmar que o Tribunal Constitucional “disse que a lei é constitucional”. Ora, no constitucionalismo português e ao contrário do que sucede, por exemplo, no Brasil, o Tribunal Constitucional não tem competência para declarar uma norma como constitucional, assim a fossilizando na ordem jurídica. O Tribunal atua apenas como um legislador negativo e não como um legislador positivo.
Assim, perante uma lei inconstitucional, o Tribunal declara a sua inconstitucionalidade, sendo que essa declaração apaga os efeitos produzidos por essa lei (artigo 282.º da CRP). Se o Tribunal entender que a lei não possui nenhum vício de inconstitucionalidade, declara a sua não-inconstitucionalidade, o que significa simplesmente que, naquele momento, o Tribunal não considera a norma inconstitucional, mas isto não impede que, mais tarde, o Tribunal (v.g., com uma nova composição de juízes), venha a considerar inconstitucional a mesma norma.
Seja como for, o mais importante na literacia constitucional não é corrigir estes pequenos lapsos, tantas vezes ditos sem mais repercussões do que ferir os ouvidos sensíveis de constitucionalistas. Também não se trata de infantilizar os cidadãos ou de paternalistamente lhes ensinar o que ‘deveriam’ saber.
Literacia constitucional é descodificar o ‘juridiquês’ e aproximar a Constituição das pessoas. Nos nossos dias, e emprestando as palavras de M. Loughlin, as constituições projetam uma existência política através de “formas que moldam – e remoldam – a realidade política”. Muito se tem feito desde a aprovação da nossa Constituição, em 1976, para descodificar a Constituição. Desde logo, o Tribunal Constitucional, além da disponibilização dos seus acórdãos no site institucional, tem aberto as suas portas a estudantes e disponibilizado pequenos vídeos que explicam a Constituição e a história e o funcionamento do Tribunal.
De salientar ainda o trabalho notável da Assembleia da República. Destaco o Canal Parlamento, acessível também mediante ligação à Internet, onde se pode assistir à emissão em direto (ou em arquivo) do Plenário, às audições nas Comissões, e a inúmeros conteúdos que permitem aproximar os eleitores dos eleitos.
Mais importante, a abertura da agenda parlamentar permite-nos compreender a exigência dos trabalhos parlamentares e, independentemente das convicções políticas de cada um, apreciar e agradecer a dedicação de todos os deputados à casa da democracia. É muito relevante que as democracias constitucionais não diabolizem a política, vislumbrando-a mais como parte do problema do que como solução. Enquanto “assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses” (artigo 147.º da CRP), o Parlamento é o órgão de soberania que melhor espelha a diversidade do tecido social.
Em suma, a literacia constitucional promove a consciencialização coletiva dos direitos e deveres fundamentais, incentiva a participação cívica e o pensamento crítico, e potencia, a médio/longo prazo, a preservação democrática.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990