À descoberta do morcego-anão nos parques do Porto – os animais que “sempre existiram, mas que nunca vemos”
A autarquia do Porto renovou o programa Noites de Morcegos, que convida a população a ver e a ouvir os vizinhos nocturnos nos espaços verdes da cidade.
Alguns nunca os viram, outros até os confundem com pássaros. Afinal, como são os morcegos e onde estão? Para os curiosos que querem encontrar respostas para estas perguntas, está a decorrer mais uma edição de Noites de Morcegos, um programa que mapeia os esconderijos destes mamíferos voadores – que sempre estiveram debaixo dos nossos narizes.
Viemos à procura deles no Parque Oriental, nas margens do rio Tinto, a terceira paragem do roteiro. A sessão ainda não tinha começado quando surgiu um morcego-anão (Pipistrellus pipistrellus), os protagonistas destas noites. Quem chegou mais cedo teve a oportunidade de o ver a vaguear pelos céus ainda muito claros. “Deve ser uma mãe à procura de alimento para as suas crias”, tenta explicar Luzia Sousa, a bióloga que orienta todas as visitas do programa. A partir daqui, deixa-se de olhar para o chão.
Sem roteiro, qualquer um consegue avistar estes pequenos voadores: basta estar em qualquer rua da cidade que tenha árvores, água e insectos. Grutas, minas, caixas de estores e ninhos abandonados também são alguns dos espaços que os morcegos utilizam para se refugiarem ao longo do ano.
Voar com as mãos e ver com os ouvidos
A sessão arranca por volta das 21h. Neste parque juntaram-se 30 pessoas – dos mais velhos aos mais novos – que já viram morcegos e sabem bem o que são. Mas há muitas facetas destes animais que são desconhecidas. “Os morcegos são fundamentais para o nosso bem-estar, porque são polinizadores, são dispersores de sementes. Controlam insectos que podem destruir as nossas culturas e que nos podem transmitir doenças”, começa por dizer Luzia, que pertence ao grupo de trabalho da Aerobats, morcegos.pt e IRIS (Associação Nacional de Ambiente). “E se eu vos dissesse que há plantas que evoluíram paralelamente com os morcegos?”, lança aos participantes.
Os morcegos (ou “rato cego”) pertencem ao grupo dos quirópteros, cujo nome significa mão e asa. No fundo, os morcegos “voam com as mãos e vêem com os ouvidos”. As asas dos morcegos são compostas por dedos que dão suporte à membrana da asa, o que faz com que estes mamíferos consigam voar. Existem mais de 1400 espécies estudadas – 29 das quais estão em Portugal (27 no continente e duas nos arquipélagos da Madeira e Açores). As duas regiões autónomas detêm um “endemismo”, ou seja, uma espécie que só existe naquela zona.
Na cultura popular, estes animais estão associados ao mal. Surgem, por exemplo, na Divina Comédia, de Dante Alighieri, nas asas do diabo; e também ficaram associados a vampiros e como sendo animais que mordem os pescoços. No entanto, são animais muito “mais interessantes”. “[Aliás,] os morcegos sempre existiram, nós é que não olhamos para eles”, considera Luzia. Afinal, é muito fácil não reparar: voam em completo silêncio.
As nossas 29 espécies alimentam-se exclusivamente de insectos. “O morcego que vimos lá em cima pesa, nesta altura, à volta de seis gramas. Se tiver de comer pelo menos metade do seu peso em insectos todas as noites, percebemos que é uma grande ajuda, porque faz com que não seja necessário usar tantos pesticidas que vão poluir a água e destruir o solo”, descreve a bióloga. No entanto, há espécies que se alimentam de fruta, sangue ou de outras espécies – desde o próprio morcego até rãs e ratos.
Os guardiões da biodiversidade
Até aqui, ficámos a saber que os morcegos controlam a população de insectos, mas ainda há mais: também são agentes polinizadores e dispersores de sementes.
Durante a noite, os morcegos-de-língua-longa-de-pallas (Glossophaga soricina) alimentam-se do néctar das flores. Enquanto comem, o pólen agarra-se ao pêlo – à semelhança das abelhas. Contudo, as florestas húmidas estão reservadas a esta espécie. E o facto de não terem um bico grande – como as aves polinizadoras – permite cobrir uma superfície maior da flor.
No grande leque de espécies já estudadas, há ainda uma que come fruta para depois cuspir as sementes; ou os morcegos podem simplesmente expeli-las através das suas fezes – é o caso das frutas com sementes pequenas – que é considerado o “melhor fertilizante que se conhece”. No fundo, este comportamento permite que as florestas se renovem, criando condições para atrair mais vida.
Por enquanto, neste jardim do Porto, ainda não há morcegos à vista – ainda há muita luz. Por isso, Luzia Souza prossegue com a explicação dos hábitos e curiosidades destes “ratos cegos”, que podem medir entre dois e 30 centímetros – é o caso das raposas-voadoras, que podem pesar até 820 gramas.
Durante o Inverno quase não há insectos, então restam duas opções: ou migram ou hibernam. Em Portugal, os “nossos” acabam sempre por escolher a segunda opção. Quando chega a altura, os normais mil batimentos cardíacos por minuto durante o voo descem abruptamente até atingirem os quatro ou cinco. “É como ligar e desligar um interruptor”, compara a bióloga. “É por isso que não se entra num abrigo quando estão a hibernar, para não acordarem e consumirem toda a energia que acumularam durante o Verão e o Outono”, explica.
“Mas afinal porque é que estamos a falar deles?”, pergunta Luzia. E responde: porque estão ameaçados. Já não se trata de perseguição, mas sim da destruição de abrigos naturais e de falso conhecimento, que leva ao envenenamento de fruta, causando a morte de morcegos polinizadores (quando na verdade o alvo são os morcegos-vampiros). “É por isso que estas acções são tão importantes, para que haja uma partilha de informação e evitar que se cometam estes erros”, esclarece a guia.
E como é que podemos ajudá-los? “Criando um jardim que tenha flores que atraiam insectos ou abrigos”, disse-nos à margem da visita.
Uma família à volta de um morcego
O crepúsculo chega e os primeiros morcegos começam a sair para beberem a água do lago que está ao nosso lado e para comerem os insectos que estão sobre as nossas cabeças.
Não os conseguimos ouvir, mas os aparelhos que Luzia trouxe conseguem decifrar os barulhos inaudíveis que estão a emitir – a chamada “ecolocalização”. O ultra-som “bate” nos objectos e estes devolvem um eco, que é processado pelo cérebro do morcego. É assim que conseguem “ver com os ouvidos”, enquanto voam na escuridão.
“Se repararem, o som final é diferente”, diz Luzia, segundos antes de abrandar a velocidade do grito dos pequenos voadores, gravado pelo aparelho. É assim que sabemos quando se estão a alimentar: o som denuncia que encontraram um insecto, que é empurrado para a boca com a ajuda da cauda ou do braço.
A curiosidade de ver um morcego é uma boa desculpa para aparecer nestas visitas. Sílvia Leite é uma dessas pessoas: quis mostrá-los à filha, que nunca tinha visto um.
Em pleno Verão, foi uma boa noite para ter essa oportunidade, apesar de já estar a ficar muito escuro. “Já começa a ficar difícil vê-los, mas foi muito bonito durante o crepúsculo”, diz. “Acho que não sabia muito sobre os morcegos, desconhecia que eram polinizadores. Como vivo na cidade, nunca consegui ver um perfeitamente, e muitas vezes confundíamos com pássaros”, acrescenta. A filha, por outro lado, ficou fascinada com o aparelho de ultra-som – tal como as outras crianças que aqui estão. No entanto, uma só visita não chega para matar a curiosidade. Ainda querem mais: “Gostávamos de ir ao Covelo, porque disseram-nos que é um dos sítios onde há mais morcegos aqui no Porto.”
A maioria dos visitantes estreia-se neste roteiro. No meio deles encontrámos Rute Pinto e Teresa Nunes. As suas expressões denunciavam o fascínio. Por sorte, houve uma desistência e conseguiram vir. “Tentei inscrever-me duas vezes no ano passado e é muito difícil conseguir uma vaga. Este ano finalmente consegui e quis vir, porque este animal atrai-me pelos seus hábitos nocturnos”, diz Rute. “Gostei muito perceber como é que eles detectam a presa para depois capturá-la. É espectacular”, descreve.
Teresa Nunes realça que “é extraordinário o facto de terem uma frequência cardíaca tão alta em pleno voo e depois baixar bruscamente quando hibernam”. Como seria de esperar, planeiam a próxima inscrição e querem trazer mais pessoas, “se tiverem sorte”.
No fim das contas, a visita cumpriu o seu objectivo. Aliás, o roteiro já se tornou uma actividade anual. “Fazemos esta actividade cada vez mais em parques, porque temos mais público, felizmente. Isso é uma coisa que me dá muito prazer, principalmente porque há cada vez mais pessoas interessadas em ouvir, tentar saber um pouco mais sobre estes animais. Ainda mais quando são crianças”, diz Luzia.
A par com a Eurobats e Morcegos.pt, a Câmara Municipal do Porto lançou a proposta no final de Junho para levar a população aos espaços da cidade que albergam uma densa flora e colónias de insectos. E onde há insectos, há morcegos. A entrada é livre, mas sujeita a inscrição prévia.
A actividade arrancou a 28 de Junho, no Parque da Alameda de Cartes/Horta da Oliveira e termina a 6 de Setembro, no Jardim do Passeio Alegre. Mesmo sem visita guiada, resta olhar para o céu durante os crepúsculos deste Verão para ver um destes mamíferos alados.