É lícito os avós pagarem aos netos por lhes realizarem tarefas pedidas?

Temos de ser claros a enunciar aquilo de que realmente precisamos. Temos saudades, queremos companhia, precisamos de ajuda? Então, vamos assumi-lo abertamente.

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EDUARDO MOSER/SANDRADESIGN
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Querida Filha,

A tentação de comprar o amor dos nossos netos é muito grande, e vai crescendo à medida que também eles crescem e temos medo que se afastem de nós. Sempre me enervou muito ver uma avó pedir a um neto adolescente que a venha visitar, aliciando-o com uma contribuição para carregar o telemóvel ou para uma viagem, mas agora não sei se um dia não serei apanhada a fazer o mesmo.

Por enquanto, como sabes, gosto de lhes pedir “tarefas” e, no final, pagar o seu trabalho a um preço justo. Parece-me um negócio honesto porque, de facto, arrumam gavetas, põem a mesa ou, por exemplo, maquilham-me com profissionalismo e dedicação. Mas sei que a fronteira é ténue. E que, de alguma forma, está ligada à minha dificuldade em receber dos outros, sem sentir que tenho de equilibrar os pratos da balança, dando também.

Tens opinião?


Querida Mãe,

Nunca tinha pensado nisto dessa forma. É verdade que muitos de nós fomos educados a contabilizar as nossas relações para que não nos sintamos “devedores”. É-nos difícil receber “só porque sim”, sentirmo-nos merecedores de amor gratuito. Quando os nossos filhos são pequenos, é preciso cuidar deles — dar-lhes de comer, adormecê-los, e por aí adiante —, e isso dá-nos, a pais e avós, uma sensação de que, ao precisarem mesmo de nós, gostam de nós. No fundo equilibra essa tal balança.

Mas, à medida que vão crescendo e querem ser mais autónomos, estamos sujeitos à rejeição, ao distanciamento. Até pode ser uma rejeição pequena — do género “Avó, afinal não vou ao nosso jantar de família” —, mas que faz disparar imediatamente os nossos alertas e inseguranças.

Claro, os pais têm este papel utilitário/presente durante mais anos, mas também não se vão safar desta sensação, mais cedo ou mais tarde.

Então, como agir? Antes de mais temos de ter presente que todos os seres humanos procuram naturalmente satisfazer as suas próprias necessidades (de amor, de pertença, de conexão), e que se ignorarmos esta verdade, camuflando-a porque nos traz culpa — medo de estarmos a ser egoístas, narcísicos, ou o que seja — vamos acabar por escolher formas menos saudáveis de o fazer.

Ou seja, temos de ser claros a enunciar aquilo de que realmente precisamos. Temos saudades, queremos companhia, precisamos de ajuda? Então, vamos assumi-lo abertamente, porque caso contrário é enorme a probabilidade de a história acabar mal.

Imagine, por exemplo, que uma avó está cheia de saudades do neto, e que quer mesmo, mesmo, vê-lo e estar com ele, mas que em lugar de lhe dizer isso mesmo, pede-lhe antes que vá lá a casa para a ajudar a transportar um móvel. Ele, que está sobrecarregado de trabalho no emprego, e que julga que aquilo de que a avó precisa é de uma ajuda logística, decide contratar uma empresa para fazer o serviço. Como reage a avó? Com uma enorme desilusão, até raiva; talvez até dê por si a queixar-se de ingratidão, enumerando tudo o que fez por ele. E ele fica irritado, porque até tratou do que ela lhe pediu, só para ouvir as lamúrias da senhora.

Pois é, não podemos assumir que os outros percebem os nossos recados velados. Poupamos trabalho a toda a gente se formos mais francos.

Mas vamos à sua outra questão, a de se é lícito pagar por tarefas dos netos. Às vezes os miúdos mais velhos “precisam” de dinheiro para um projecto, para comprar qualquer coisa que desejam muito, e os trabalhos remunerados parecem-me que podem ser uma boa forma de dar, sem “dar”. Ou a nossa casa ou carro precisa de uma limpeza mais a fundo e podemos pedir-lhes o favor, mas como é um favor chato, dar-lhes um incentivo extra, não vejo que venha daí mal ao mundo.

Mas, lá está, se estamos com saudades deles e oferecemos coisas em troca, ficaremos sempre inseguros sobre se gostam de nós ou das coisas. E, surpreendentemente, pode acontecer também o inverso: eles próprios deixam de perceber se gostamos deles por eles, ou pelos “serviços” que nos podem prestar.

Mãe, daí que o meu conselho final seja: “Avós, não tenham medo de dizer aos vossos netos que querem a companhia deles.”

Se isto ficar claro, então não há perigo de amor e serviço se confundirem, e podem pagar as tarefas que entenderem, sem que um “não” vos parta o coração.

Beijinhos.


Com o Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Depois das férias de Verão de 2023, estão de volta com uma nova temporada repleta de birras.

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