O Coração Ainda Bate. Os filhos únicos

No regresso de O Coração Ainda Bate, Inês Meneses escreve sobre os filhos e o sentimento de culpa.

De entre tantas conversas boas que pude ter com a minha filha nos últimos meses, guardei uma que me atira para esta reflexão. Falávamos de sentimentos de culpa e de como eles nos acrescentam peso ao que já aparece na balança. Ela perguntou se eu tinha esses sentimentos de culpa em relação a ela. Primeiro reagi com espanto, um esgar, depois fui levada a pensar com certezas, ainda que todo o pensamento seja sujeito a novas dúvidas. Ainda assim, foi curto o tempo até à resposta, como se reagisse em alerta ao som de um disparo.

Há perguntas que são tiros, independentemente de serem certeiros. “Não tenho” – disse-lhe eu. Foi a vez de ela ficar espantada. Senti-me então na obrigação de pensar no que me tinha feito responder a isto sem hesitações. “Um dia, se a vida nos proteger e eu já for velha, não poderás estar a tomar conta de mim, porque tens de viver a tua vida. E então também não poderás ter sentimentos de culpa. Ambas cumprimos o nosso desígnio.” Foi estranho ter pensado nisto, mas, ao verbalizar o que o gatilho tinha accionado, adivinhei uma espécie de compromisso meu com o desprendimento. Já agora, desprendimento da culpa e desprendimento do que estará para vir.

Ouvimos muito os pais, já mais cientes das nossas limitações, dizerem que os filhos não nos pertencem, que só são nossos enquanto dependem fisicamente de nós e que temos de os deixar ir depois. É verdade. Mas também é verdade que todos temos a remota esperança, a expectativa transversal ao amor, de que um dia possam estar muito presentes na nossa vida, que fiquem, que vão, mas que voltem. Que regressem sempre. E, no limite, nos ajudem. Essa expectativa aparece e desaparece, acompanha a nossa vulnerabilidade.

A minha vida sem a minha filha parece-me agora um vazio. Tenho sorte de que ela tenha nascido minha cúmplice sem nos conhecermos. Talvez essa cumplicidade se tenha desenrolado a dada altura ainda dentro de mim.

Voltemos ao que é mais importante: o sentimento de culpa. O espanto dela e a minha certeza: tenho dado à minha filha tudo o que tenho, mesmo falhando. Mesmo tentando melhorar em tantos momentos.

Pais de filhos únicos sentem-nos como meio corpo seu. Um corpo único. Pais de filhos únicos quase querem engolir o ar que eles deitam fora. Os filhos são o ar que nos falta. Uma angústia que tentamos reverter todos os dias em alegria. Por isso fui sempre inteira no convívio com ela, celebrando em momentos de festa, chorando quando a tristeza leva a melhor.

Não há nenhum dia em que tenha escolhido não estar com ela. Nada disso. Estive sempre com ela e estive com outras pessoas para me sentir inteira, para continuar a ser esta, a sua cúmplice. Continuamos todos a perguntar que tempo passam as mães com os filhos mantendo os homens invisíveis nesta matéria. E vem-me sempre à memória o pai que estava numa antestreia e que, minutos antes de o filme começar, liga à filha e diz: “O pai está a trabalhar, mas gosta muito de ti.”

As mulheres deixam que a culpa as invada, e se num braço têm um vestido de noite, no outro estão as calças de fato de treino. É o dilema entre aquilo que os outros lhes dizem para fazer e aquilo que elas desejam que aconteça. Se a sociedade continua a ser ingrata com as mulheres, então somos nós que devemos impor as nossas regras. É como testar a produtividade numa empresa que já tem a semana de quatro dias: toda a gente se sente melhor e isso reflecte-se a todos os níveis. Se uma mulher adia as suas escolhas, não poderá ser melhor mãe porque vive em défice. O amor não é maior porque abdicamos. O amor é grande porque pudemos continuar a tentar ser felizes. E a felicidade tem tantas escolhas!

Ainda não tinha dito, mas depois do espanto inicial da minha filha, ela ficou a pensar no que eu lhe disse. E com isto libertei-a para a vida. Para a vida que, espero, possa viver inteira sem abdicar de nada.

O coração ainda bate.

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