Gosto de pensar que alguns leitores terão notado que esta newsletter fez uma interrupção de duas semanas. Para quem trabalha num jornal, o regresso de férias é, com alguma sorte, o momento para pôr leituras em dia. Foi o que aconteceu e, por isso, partilho aqui (com breves comentários) alguns dos temas com que me cruzei hoje. 

Apple e os problemas de fabrico
Há pelo menos uma semelhança entre os óculos Vision Pro, que a Apple apresentou há um mês, e o primeiro iPhone: ambos foram revelados antes de estarem prontos para serem produzidos em massa e colocados no mercado.

O Financial Times descobriu que a Apple está a ter problemas na cadeia de produção dos óculos (a Apple dá ao dispositivo epítetos um pouco mais hiperbólicos, mas simplifiquemos). As dificuldades estão a colocar em causa o que seriam as expectativas internas de vender um milhão de dispositivos no próximo ano.

Os óculos foram mostrados a 5 de Junho, com a empresa a apontar o lançamento do dispositivo, que custará 3500 dólares, para algures no início do próximo ano.

Porém, segundo o FT, a única empresa que será inicialmente responsável por montar os Vision Pro (uma fabricante chinesa chamada Luxshare) prevê fazer menos de 400 mil unidades no próximo ano. O fornecimento dos ecrãs ultra-sofisticados é um dos obstáculos. 

A propósito de cadeias de produção, um outro artigo também no FT dá conta de como o Vietname se está a posicionar para se tornar um fornecedor das grandes empresas tecnológicas. O país espera capitalizar a tensão geopolítica que leva alguns negócios a quererem reduzir a dependência da China.

É um tema que já aqui tínhamos abordado: concorrer com alguma da manufactura complexa de que a China é capaz não é algo que se faça da noite para o dia. Mas o Vietname tem um triste trunfo: o custo da mão-de-obra é muito inferior ao dos trabalhadores na China. Em 2020, os trabalhadores fabris vietnamitas recebiam menos de metade do que os chineses.

Musk a ser Musk
O Twitter de Elon Musk tem feito jus ao conceito de ser uma rede social para acompanhar o que se está a desenrolar em tempo quase real – especialmente se o que está a acontecer são as erráticas estratégias de gestão do próprio Musk.

O empresário anunciou que os utilizadores teriam um limite do número de mensagens que poderiam ver por dia, num sistema de três patamares, consoante a sua relação com a plataforma: os utilizadores pagantes podem ver mais mensagens; seguem-se os utilizadores que não tenham uma subscrição; e, no fim, as contas mais recentes. Os limites ao certo? Dependem dos humores de Musk: começaram por ser entre 300 e 6000, mas aumentaram umas horas depois. E, para criar ainda mais confusão, há utilizadores que conseguem exceder os limites sem qualquer impedimento.

O Twitter não é usado por muitas pessoas, quando comparado com as outras grandes plataformas. Mas tem um peso institucional sem rival, dada a quantidade de políticos, media, e instituições públicas e privadas que o usam como um canal de comunicação oficial. O que lá acontece tem importância.

Musk disse que os limites pretendem acabar com a recolha massiva e automatizada de dados. Mas não falta quem argumente que se trata de uma estratégia comercial para tentar aumentar o número de pessoas com conta paga, numa altura em que as receitas publicitárias caem drasticamente. 

A empresa já não é cotada, pelo que as contas não são públicas, mas há notícias de que as vendas de anúncios nos EUA (de longe o principal mercado para a rede social) caíram para menos de metade em Abril e Maio.

Entretanto, a nova CEO, Linda Yaccarino, não tem uma tarefa fácil em mãos; a Tesla teve um trimestre recorde em termos de volume de vendas (graças a uma estratégia de redução de preços); e a imprensa dedicou demasiada atenção à possibilidade de Musk e Mark Zuckerberg se defrontarem num ringue

Má moeda?
A Binance, a maior plataforma de compra e venda de criptomoedas, e o seu fundador, Changpeng Zhao, parecem estar ainda em mais apuros do que quando os deixámos na última newsletter.

Segundo o site Semafor (uma interessante nova publicação co-fundada pelo antigo director do Buzzfeed News), Zhao está entrincheirado no Dubai e evita ir a França, para onde viajava frequentemente, porque a empresa está a ser investigada neste país por suspeitas de lavagem de dinheiro.

Independentemente das conclusões da investigação, é um episódio que pode pôr um ponto final ao que tem sido uma relação próxima. A Binance escolheu Paris como uma cidade-bandeira para a promoção das criptomoedas e, no ano passado, tinha recebido luz verde regulatória das autoridades francesas.

Já nos EUA, o regulador dos mercados financeiros processou a Binance por uma série de alegadas fraudes, incluindo ter desviado dinheiro dos clientes para operações de investimento (e para a compra de um iate).

"Um desastre à espera de acontecer"
A New Yorker publicou um extenso e interessantíssimo artigo sobre como o submersível Titan, que implodiu numa expedição ao Titanic, era "um desastre à espera de acontecer".

O texto descreve com muitos detalhes a história e os métodos de Stockton Rush, o CEO da Ocean Gate, a empresa que criou o Titan (e uma das pessoas que ia a bordo quando o veículo implodiu).

Da estrutura em fibra de carbono ao uso de um comando de videojogo para controlar o submersível, as muitas falhas e riscos eram conhecidas de várias pessoas no pequeno sector das viagens a grande profundidade. Tinham sido detalhadas num relatório por um antigo director da empresa, que acabou despedido por tentar fazer soar os alarmes. As autoridades também foram avisadas. 

É fácil ler o artigo e encontrar paralelos com algumas das histórias de Silicon Valley, desde o antigo mote do Facebook  "move fast and break things" ao caso de Elizabeth Holmes e da sua falhada tecnologia de análises clínicas. A história do Titan e de Rush é também uma história de ambição desmedida, de desrespeito pelas normas estabelecidas e de narrativas fantasiosas. E de uma hubris que termina em tragédia. 

Até para a semana.