Casa do Alentejo celebra 100 anos: o “amor a um povo, uma cultura e uma região”

Nasceu a 10 de Junho de 1923 para apoiar os alentejanos que procuravam uma vida melhor em Lisboa. Hoje é um dos principais centros de defesa e promoção da região, da sua cultura e gastronomia.

acesso-aberto,fugas,patrimonio,alentejo,lisboa,turismo,
Fotogaleria
O pátio em estilo árabe da casa do Alentejo Nuno Ferreira Santos
acesso-aberto,fugas,patrimonio,alentejo,lisboa,turismo,
Fotogaleria
Salão e refeições Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Outra sala nobre da Casa do Alentejo Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
acesso-aberto,fugas,patrimonio,alentejo,lisboa,turismo,
Fotogaleria
A arte está por todo o lado Nuno Ferreira Santos
Folha
Fotogaleria
Os azuleijos estão por todo o lado Nuno Ferreira Santos
Sofá
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
acesso-aberto,fugas,patrimonio,alentejo,lisboa,turismo,
Fotogaleria
Mesas do antigo casino Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
A Casa do Alentejo é um marco da rua das Portas de Santo Antão Nuno Ferreira Santos
Ouça este artigo
--:--
--:--

Neste sábado e domingo há festa rija na lisboeta rua das Portas de Santo Antão, mais propriamente no Palácio Alverca. Nada tem a ver directamente com o Dia de Portugal, ou com os santos populares cujos arraiais já se espalham pela cidade. O folguedo visa assinalar os 100 anos da Casa do Alentejo (CA) e de “amor a um povo, uma cultura e uma região”. E esta associação sem fins lucrativos chega ao centenário cheia de força e com a melhor situação financeira da sua história.

Nos primeiros anos do Século XX eram muitos os que vindos de todo o país, especialmente do interior, procuravam em Lisboa uma vida melhor. Famílias inteiras de gente pobre que fugia à fome e que faziam engrossar os já muitos bairros de barracas que cercavam a capital.

Muitos deles apenas encontravam os apoios que necessitavam nas associações regionais. Eram estes grémios formados por gente das diversas regiões já enraizadas na capital que os ajudavam a encontrar trabalho, que davam o ensino básico aos filhos, apoio médico e que proporcionavam também alguma alegria nos dias de festa.

Foto
A Casa do Alentejo está repleta de refúgios de calmaria miguel manso

A primeira a nascer foi, em Setembro de 1905, o Club Transmontano, hoje Casa de Trás os Montes e Alto Douro de Lisboa. Seguiu-se, em 1907, O Grémio da Madeira. Em Abril de 1923 surgiu a Casa do Minho e, dois meses depois, a 10 de Junho, nascia a Casa do Alentejo.

Segundo reza a história publicada no site da associação, a ideia de criar uma liga que reunisse a “colónia alentejana em Lisboa” remonta a 1912, com abertura de uma sede no bairro de Alcântara. No entanto, a primeira tentativa não foi bem-sucedida e o processo só viria a ser reiniciado cerca de dez anos depois, “a partir do mesmo núcleo de notáveis que fundaram o Grémio Alentejano em 10 de Junho de 1923” (Casa do Alentejo a partir de 1939), desta vez com sede alugada no Bairro Alto.

Foto
A Casa do Alentejo tem a sede no Palacio Alverca Nuno Ferreira Santos

Este “núcleo de notáveis” era formado por alentejanos “com estatuto social e com prestígio na esfera pública, como literatos, académicos, médicos e militares, além de estudantes universitários e membros da pequena burguesia”. O primeiro presidente foi o alfaiate Jacinto Fernandes, que tinha negócio aberto no bairro.

A associação regionalista só chega em 1932 à Rua das Portas de Santo Antão e ao Palácio Alverca, construído nos finais do século XVII, alugando espaço à família Paes de Amaral (viscondes de Alverca).

O palácio já era conhecido pelos lisboetas, pois tinha funcionado ali o primeiro casino em Portugal, fundado em 1917. O Magistic Club teve, porém, vida curta, já que, em 1919, Salazar proibiu o jogo em Portugal.

Foto
Pela Casa do Alentejo, dão-se muitos motes para a região Nuno Ferreira Santos

Mostrar o Alentejo ao país

É já instalada no palácio, com 1.800 metros de área coberta, que a Casa do Alentejo começa a crescer. Segundo um artigo académico de Daniel Melo, que apresenta a história da CA, no seu papel no campo assistencial, “destacam-se o natalício e pascoal ‘bodo aos pobres’ (obra duma comissão feminina própria), o apoio pecuniário a alentejanos mais necessitados, a colocação de comprovincianos desempregados (a pedido destes), o retorno de ‘patrícios indigentes, fornecendo-lhe[s] para tanto os necessários meios’, a assistência a doentes e presos (incluindo a então costumeira oferta de tabaco), o funcionamento dum posto clínico (1941-70), gratuito para os comprovincianos”.

A CA oferecia também “descontos aos seus associados em vários estabelecimentos comerciais (dos mais variados sectores) e em consultórios médicos, o que era ponto de honra daquelas associações regionalistas com maior implantação institucional, influência comunitária e empenho associativo”.

Foto
Nuno Ferreira Santos
Foto
Nuno Ferreira Santos
Foto
Nuno Ferreira Santos

Ainda segundo Daniel Melo, no sector educativo, destaca-se “a actividade do Orfeão da Casa do Alentejo (desde 1927), os cursos de explicação e lições de literatura (1928), de ginástica (desde 1935), de literatura portuguesa (1942) e de dicção (1950), a escola primária feminina (1942-70, com ‘cantina’ e para as filhas de alentejanos desfavorecidos) e os prémios para os melhores alunos alentejanos dos liceus de Lisboa e Alentejo (desde anos o início dos anos 40 até, pelo menos, a 1948)”.

Além dos variados apoios aos associados, a Casa do Alentejo tinha também como vocação ser uma associação que mostrava a Lisboa e ao país a relevância da região alentejana, através de manifestações culturais como o canto tradicional popular, a poesia popular e erudita, o artesanato, a gastronomia, o turismo e os seus monumentos. Vocação que, ao longo dos anos, lhe valeu vários prémios, distinções e comendas.

Foto
João Proença tem 76 anos e é presidente da Casa do Alentejo há duas décadas Nuno Ferreira Santos

“E isso que ainda somos hoje. Somos a embaixada do Alentejo em Lisboa. Realizamos um trabalho permanente com todas as autarquias da região e participamos em todas as iniciativas que a promovam e defendam. Procuramos, pelos mais variados meios, contribuir para a dinamização, promoção e preservação da cultura alentejana, actuando como espaço cultural polivalente promovendo dezenas de iniciativas todos os anos”, afirmou ao PÚBLICO João Proença, 76 anos, presidente da casa há 20.

Para este antigo empregado de escritório reformado, a CA tem ainda “um papel activo na discussão dos problemas actuais, assumindo a sua responsabilidade social perante os desafios que a região enfrenta”. “E um desses problemas é a desertificação de uma boa parte da região causada pela falta de investimentos. Lutamos e pressionamos quem de direito para que sejam dadas oportunidades aos nossos jovens na sua terra, que dela têm de sair por lá não haver investimento que dê emprego”, acrescenta este natural de Borba.

O Palácio Alverca foi comprado pelos responsáveis pela CA em 1981. Custou cerca de 4,5 milhões de escudos (hoje cerca de 22.500 euros). “Na altura era muito dinheiro, mas para o edifício que é até não foi caro. O problema é que estava muito degradado e já gastámos uns valentes milhares de euros em reparações. Por exemplo, toda a cobertura teve de ser mudada”, salienta João Proença.

Foto
Casa do Alentejo nuno ferreira santos

Milhares de visitantes por ano

Ao final da manhã da passada quarta-feira, um corrupio de gente, a maioria turistas, subia e descia os dois lances de escadas de mármore que dão acesso ao salão principal do Palácio Alverca. Os que chegam não escondem a sua surpresa pela beleza do pátio de estilo árabe, que é uma espécie de cartão-de-visita da CA. Quase todos se apressam a pegar nos telemóveis e câmaras fotográficas para registarem os mais variados detalhes: os abundantes mosaicos, as arcadas, a diversa estatuária e peças de artesanato, a fonte central, agora embelezada com uma peça do escultor alentejano Jorge Pé-Curto, e, claro, o enorme tecto de vidro.

Mas o pátio de estilo árabe é apenas uma das muitas belezas espalhadas pelas mais de 30 salas e salões nos três andares do palácio. Abunda o mobiliário de luxo, painéis de azulejo que enchem paredes, enormes janelas, decoração em talha dourada, mesas de jogo do velho casino, enormes candelabros de cristal, frescos pintados em tectos e paredes e uma rica biblioteca que tem um acervo de mais de 10 mil unidades. “Muito do rico mobiliário tem mais de 100 anos”, diz o presidente da CA.

Foto
Casa do Alentejo, um século de histórias nuno ferreira santos

E, depois há a gastronomia com inspiração alentejana, servida em três espaços: o restaurante principal dividido por dois salões do segundo andar, com capacidade respectivamente para 250 e 180 pessoas, e que funciona quase desde que a CA se instalou no palácio; a Taberna, num pequeno pátio lateral ao principal, que abriu há cerca de 10 anos, e a casa de produtos regionais/café, instalada numa loja térrea, lateral ao edifício principal. Os espaços de restauração fecham à segunda-feira.

Margaret Osborne, 29 anos, e Jeff Raworth, 27, ocupam, ao início da tarde desta quarta-feira, uma das mesas da Taberna. O casal inglês está de férias em Lisboa e chegaram a CA graças às indicações “em vários guias turísticos” e de “sugestões de amigos portugueses a trabalhar em Londres”.

“Temos [em Inglaterra] os palácios e os castelos mais bonitos do mudo. Nisso somos imbatíveis, mas esta casa é uma pequena pérola. Cada sela é diferente de todas as outras, há pormenores extraordinários por todos os lados. É de facto maravilhosa. Uma pérola!”, diz Jeff.

Decidiram almoçar por ali, porque “os guias também dizem que a comida é muito boa e não é nada cara”, acrescenta Margaret. Pediram, para dividir, uns ovos mexidos com farinheira (5,50 euros) e umas migas com carne de porco frita (9 euros). “Se a comida for tão boa como o palácio está o dia ganho”, diz Jeff sorrindo. “Vamos recomendar a visita aos nossos amigos”, acrescenta Margaret.

Foto
Uma das tabernas da Casa do Alentejo nuno ferreira santos

João Proença assegura que a casa é visitada “por muitos milhares de pessoas todos os anos” que nada pagam para puderam ver alguns dos seus espaços. “Todos os dias há 300, 400 pessoas que nos visitam, a maioria turistas. No Verão esse número dispara”, diz o presidente da CA.

Restauração “alimenta” finanças

A restauração e as rendas de três lojas na rua das Portas de Santo Antão são “alimento” financeiro da casa alentejana. “Não temos fins lucrativos. Todo o dinheiro que entra vai para o restauro da casa, que está sempre a precisar de obras, para os ordenados nos nossos 40 trabalhadores e para as diversas iniciativas que realizamos ao longo do ano.” A estes juntam-se o aluguer de salas e salões para festas, refeições, reuniões e os mais variados acontecimentos de empresas, partidos e sindicatos, entre outros.

Durante o período mais intenso da pandemia, os espaços de restauração e a actividade cultural estiveram temporariamente suspensos, viveram-se tempos difíceis. “Tivemos mesmo de fazer um empréstimo bancário de 400 mil euros para fazer face às despesas”, conta Proença.

Porém, no ano passado, as coisas mudaram. Com um orçamento de dois milhões de euros, a CA chegou ao fim do ano com um lucro de 200 mil euros: “Foi o nosso melhor resultado de sempre. Temos um futuro risonho para continuar a defender e o nosso amado e bonito Alentejo e o seu povo maravilhoso.”

Foto
Casa do Alentejo Nuno Ferreira Santos

Actualmente a casa tem 1.500 associados, que pagam dois euros por mês se forem menores de 65 anos, e um euro se foram maiores de 65 anos. E a única coisa que João Proença pede para o futuro “é maior participação”. “Queremos mais gente ao nosso lado a defender o Alentejo, mais gente nova com ideias frescas. Quanto mais estiverem ao nosso lado, mais força tem a sua embaixada em Lisboa e a nossa região”, conclui.

Voltemos ao princípio, ou à festa rija prevista para este fim-de-semana e que tem o alto patrocínio do Presidente da República. Neste sábado, pelas 10h30, as celebrações arrancam com o hastear da bandeira, seguido da inauguração da Exposição “100 Anos de História e Factos”. Haverá, depois, a Sessão Solene de Comemoração do Centenário, que inclui uma homenagem aos sócios com mais de 25 e 50 anos de filiação. Durante a sessão, os trabalhadores da Casa do Alentejo também serão homenageados.

Já no domingo, será retomada uma célebre tradição da casa e, a partir das 15h, haverá um momento musical com a presença de Grupo de Viola Campaniça, seguido de animação e convívio que inclui uma “tarde dançante”, uma tradição que vem desde 1929.

Sugerir correcção
Comentar