Mães, concedam-se mais liberdade, mais paixões que nos façam esquecer os TPC da vida
Até dói as saudades que sentimos do tempo em que podíamos estarmo-nos genuinamente nas tintas para a logística da casa, ou para o cansaço dos nossos pais.
Querida Mãe,
Descobri porque é que o facto de os adolescentes a meio de uma discussão connosco recuarem para o quarto e nos darem “com a porta na cara” nos tira tanto do sério. Não é por querermos ganhar a discussão. Não é, sequer, por acharmos que estamos a fazer um mau trabalho a educá-los, nem por nos sentirmos menos respeitados. Mãe, sabe qual é a verdade, aquela que não queremos admitir? É porque é pura e simplesmente, Inveja!
Inveja da liberdade que eles têm de largar tudo, rolar os olhos e dizer “Não me interessa”.
Temos inveja quando lhes pedimos para nos ajudar com um irmão mais novo ou com a arrumação da cozinha e eles encolhem os ombros e seguem para o quarto, fechando a porta a todo o caos. Até dói as saudades que sentimos do tempo em que podíamos estarmo-nos genuinamente nas tintas para a logística da casa, ou para o cansaço dos nossos pais. Do tempo em que éramos egocêntricos o suficiente para permitir que uma paixão por um rapaz nos conseguisse fazer esquecer os TPC, ou a pressão dos professores que ameaçavam com mais um teste. Quando nem nos passava pela cabeça por as necessidades de toda a gente à frente das nossas.
Mãe, e que bom era entregarmo-nos a uma birra, a uma indignação, sem aquele esforço, que agora fazemos, de manter a cabeça fria, de nos pormos no lugar do outro para perceber o seu ponto de vista!
Ui, que inveja, de podermos amuar e ficar no quarto a chorar, na certeza de que há alguém que vai fazer o jantar.
A sério, ajudou-me tomar consciência de tudo isto, para lhe dar mais valor a si, e ao pai, por me terem deixado gozar deste egocentrismo, dentro dos limites do razoável, evidentemente. De terem aceitado, com sentido de humor e paciência, a minha liberdade para estar mal, chateada ou amuada, enquanto simultaneamente continuavam a gerir tudo o que havia para gerir. Obrigada por isso!
Mas é difícil, não é, mãe? Ver um filho a entrar para o quarto e fechar a porta e resistir a ir atrás dele tentar “resolver”...
Beijinhos!
Querida Ana,
Bem-aventurados os filhos que romantizam os pais que tiveram. É verdade que a memória muito fresca da minha adolescência — é a vantagem de ter pais na casa dos vinte anos! —, permitia-me não tomar as portas que batiam cá em casa como uma afronta pessoal, nem levar demasiado a sério os amuos e os choros, mas parece-me que grande parte da minha “tolerância” resultava do meu cansaço. Ou seja, acabava por ser mais fácil saltar fora da birra e fazer eu do que entrar em batalhas de resultado incerto. Desconfio que a liberdade que te soube tão bem, e que agora invejas, mas generosamente concedes aos teus próprios filhos, não vem nos manuais de parentalidade. E é por isso que tendo a abominar as “apps” e as soluções pré-fabricadas que tantos livros de auto-ajuda oferecem: esquecem que fazemos o que pudemos, nas circunstâncias do momento.
Mas obrigada pela tua carta, porque o mais idiota é que passamos anos a recriminarmo-nos por supostas falhas que, na realidade, pelos vistos resultam bem. O que, no fundo me estás a dizer, é que não errei quando não fui a correr atrás de ti e dos teus irmãos para dentro do quarto, forçando a porta que me fechavam, que não fez mal não ter tido a energia para “resolver” todos os vossos problemas, na hora, que não vos prejudiquei para a vida por não ter sido mais firme perante as vossas insolências. E, por isso estou-te grata.
Parece-me que esta conclusão responde à tua pergunta final: sim, custa não “vergar” os nossos filhos às nossas vontades, custa não ser capaz de mover o céu e a terra para lhes tirar da frente os obstáculos que os fazem sofrer, custa vê-los (aparentemente) ignorarem a nossa exaustão e tratarem-nos como robots, custa sentir uma porta fechada entre nós, custa lidar com a sensação de que estamos a criar monstros mas, se calhar, a lição mais importante a tirar de tudo isto é que também nós precisamos de “recreios”, de alguém que apare os nossos choros e amuos. Porque parece-me que puseste o dedo na ferida, quando falaste de inveja. Às vezes, metade da nossa zanga com os adolescentes, é mesmo inveja. E da inveja nasce o ressentimento, e o ciúme que corrói as relações.
Por isso a moral desta birra é: Mães, concedam-se mais liberdade, mais paixões que nos façam momentaneamente esquecer os TPC da vida, com a vantagem de que agora estamos livres do acne e da montanha russa hormonal de que os infelizes são reféns.
O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.