Pós-pandemia com mais episódios de doença e pior acesso para os mais pobres

Estudo indica que a pandemia acentuou a associação entre a condição socioeconómica e a ocorrência de episódios de doença: as pessoas de grupos com maior rendimento reportaram menos situações de doença

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Proporção de pessoas que procuraram os serviços de urgência no ano passado ficou abaixo dos níveis pré-pandemia, conclui estudo Manuel Roberto

Portugal registou, em 2022, mais episódios de doença e pior acesso aos cuidados de saúde para os mais pobres, segundo um relatório divulgado esta terça-feira, que aponta para um forte impulso no uso da Linha SNS24.

O relatório Acesso a cuidados de saúde, 2022 - As escolhas dos cidadãos no pós-pandemia, que resulta da Iniciativa para a Equidade Social, uma parceria entre a Fundação "la Caixa", o BPI e a Nova SBE, revela uma redução na procura de serviços de saúde e um aumento dos episódios de doenças.

Os dados indicam que a pandemia acentuou a associação entre a condição socioeconómica do agregado familiar e a ocorrência de episódios de doença: as pessoas de grupos socioeconómicos de maior rendimento reportaram menos situações de doença (provavelmente devido à redução de contactos sociais resultantes da maior permanência em casa) e o grupo socioeconómico com maior dificuldade financeira reporta um acréscimo grande.

Os autores indicam que o período da pandemia de covid-19 trouxe "uma inversão da tendência positiva de redução de dificuldades de acesso [aos cuidados de saúde] de quase uma década".

Concluem igualmente que, nos anos da pandemia - 2020 e 2021 -, apenas 27% e 30% dos inquiridos, respectivamente, disseram que se sentiram doentes, pelo menos uma vez, mostrando que o período pandémico "foi marcado por valores anormalmente baixos neste indicador".

Factores como rendimento mais baixo (47,6%) e idade mais avançada (57,6%) estão associados a uma maior probabilidade de a pessoa se ter sentido doente, lembram os investigadores, que apontam para "uma subida expressiva" em 2022 nos episódios de doença, com 40% dos inquiridos a dizer que se sentiu doente pelo menos uma vez no ano.

"Por um lado, o início de 2022 foi marcado por grandes impactos da variante ómicron da covid-19", por outro, "ao longo do ano de 2022, a redução da utilização generalizada das medidas de protecção individual contribuiu para um aumento de circulação dos vírus", escrevem.

O relatório regista também um forte aumento da utilização da Linha SNS24 no pós-pandemia: passou de 3%, em 2019, para 28%, em 2022. A prestação de cuidados de saúde nos sectores público e privado foi igualmente alvo de análise, verificando-se um aumento no recurso ao sector público, recuperando parcialmente a queda verificada entre 2019 e 2020, em grande parte devido à maior utilização da Linha SNS 24.

"Acabamos por constatar que as pessoas utilizam a Linha Saúde 24 e depois são reencaminhadas e vão aos serviços a que devem ir", o que se traduz "num aumento do número de contactos com o sector público", explicou à Lusa Pedro Pita Barros, um dos autores do relatório.

Os autores do estudo observam também que, depois do período de pandemia, há "uma certa reconfiguração" do sector privado, com o aumento do peso do recurso aos hospitais privados, "quando as pessoas se sentem doentes, mas também porque a prática em consultório privado individual tem desaparecido para se integrar dentro destas unidades no sector privado", explicou o especialista em economia da saúde.

Questionado sobre o peso dos seguros de saúde nesta evolução, o investigador diz que ajuda, "mas não está a ter o efeito determinante nesta utilização", sublinhando que o número de pessoas que diz ir ao sector privado (10%) se tem mantido estável nos últimos anos. "Os seguros de saúde facilitam, mas provavelmente facilitam às pessoas que já iriam lá de qualquer forma e, portanto, agora têm uma cobertura financeira para algo que antes pagariam", acrescentou.

O investigador chamou ainda a atenção para a "preocupação maior dos próprios operadores privados em terem uma oferta de médicos de família", apontando o aparecimento de um anúncio nesse sentido. "Para lançarem um anúncio a dizer que têm essa disponibilidade, estão claramente a ter de ter uma organização e isso poderá trazer, para um futuro próximo, uma alteração substancial", acrescentou.

Procura das urgências abaixo dos valores pré-pandemia

O mesmo estudo concluiu que a proporção de pessoas que procuraram os serviços de urgência no ano passado ficou abaixo dos níveis pré-pandemia, apesar da ligeira subida face aos anos de 2020 e 2021. Segundo o documento, a proporção de pessoas que foi às urgências era de 41,1% em 2019 e, no ano passado, caiu para 35,5%.

Em declarações à Lusa, Pedro Pita Barros avisa que os dados das urgências devem ser sempre analisados "com algum cuidado", questionando: "Qual é a informação que as pessoas têm no momento em que decidem ir?". O especialista em economia da saúde considera que, quando se fala em "falsas urgências" por haver muitos casos de utentes com pulseiras de cor verde ou azul - as menos urgentes da cinco cores que compõem o sistema de Manchester -, parece que se está a "culpabilizar as pessoas".

Defende que a ideia de canalizar as pessoas pelo SNS24 antes de irem às urgências "é boa", mas recorda: "Como também sabemos, de dados passados, há pessoas que são enviadas para as urgências pelo atendimento telefónico, mas depois chegam lá e são azuis e verdes". "Há decisões que só se conseguem perceber no momento" que se vê o doente, insiste.

Além das medidas para fazer com que as pessoas passem pelo SNS24 antes de ir às urgências - à semelhança de uma experiência piloto que está a decorrer no Norte do país -, Pita Barros diz ainda esperar que os próprios algoritmos de classificação das pulseiras azuis e verdes "consigam ser afinados" para se perceber o que leva estas pessoas a recorrer a uma urgência.

Contudo, diz que é importante tomar medidas no sentido da redução no número do número de episódios de urgência pois, defende, "o número de pessoas que recorrem, em Portugal, é manifestamente excessivo quando olhamos para o panorama geral da utilização do sistema".

Apontando exemplos de organizações diferentes nos cuidados primários para garantir a cobertura de utentes sem médico de família - como a Via Verde, no Seixal e em Almada -, recorda: "Por vezes o Serviço Nacional de Saúde tem uma característica que é a gestão de topo achar muito bem, mas depois, em algum momento, as coisas acabam por não acontecer e não é dado o caminho suficiente para estas experiências provarem o seu valor e, eventualmente, serem expandidas".

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