Contratações na saúde não conseguiram reforçar capacidade assistencial

Estudo refere que a última década teve três “choques” negativos sucessivos sobre os profissionais de saúde que resultaram na sua exaustão, perda de rendimento real e na falta de condições de trabalho.

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Estudo aponta a necessidade de um reporte sistematizado sobre os profissionais em prestação de serviços Manuel Roberto

As contratações na Saúde nos últimos anos serviram apenas para manter a capacidade assistencial, e não para a reforçar, conclui um estudo sobre recursos humanos em saúde que pede mais dados para caracterizar o peso do duplo emprego e da prestação de serviços.

"A análise realizada sugere que grande parte das contratações para o SNS [Serviço Nacional de Saúde] foi utilizada para manter a capacidade assistencial do sistema, e não para a reforçar", referem os autores do documento, os economistas Pedro Pita Barros e Eduardo Costa, da Nova SBE.

Defendem igualmente que a interpretação do aumento do número de profissionais como reforço da capacidade do sistema "é abusiva", justificando: "Parte do aumento pode ser motivado por uma diminuição dos horários de trabalho, ou por variações no volume de profissionais de saúde em prestação de serviços".

Sublinham que a capacidade assistencial do SNS depende, entre outros factores, do número de horas trabalhadas, e não do número de profissionais, e sugerem uma nova forma de gestão, testando novos modelos de organização com "maior flexibilidade e um maior trabalho em equipa entre os diferentes grupos profissionais". "A ausência dessa flexibilidade e capacidade de substituição fará com que os sistemas de saúde enfrentem custos excessivos. Com os mesmos orçamentos a prestação de cuidados de saúde poderia ser superior", alertam.

A propósito da necessidade de uma gestão mais flexível, Pedro Pita Barros, um dos autores do documento, exemplifica: "Se os novos médicos têm preferências diferentes, então, se calhar, os contratos oferecidos também têm que ser diferentes". "Por exemplo, é dizer ao médico: "você pode escolher estar connosco com este contrato, ou com aquele contrato, em que um tem mais e outro menos horas, mas que não seja só a discussão de exclusividade ou dedicação plena. Que seja mais flexível do que isso", explicou.

Defende igualmente que se deve considerar também "oportunidades de desenvolvimento de carreira que sejam diferentes do habitual". "Qual é o receio de um jovem profissional de ir para o interior do país? É ficar isolado no seu desenvolvimento profissional. Por que não permitir ele ter uma espécie de Erasmus ao fim de 4 ou 5 anos, para ir a um centro médico que ele escolha, no país ou fora do país, para ter o seu desenvolvimento", admitiu, reconhecendo que seria preciso um maior planeamento para estes clínicos e a sua substituição.

Ainda sobre planeamento, lembrou o que já se sabe sobre a feminização da profissão, sublinhando que isto colocará questões futuras relativamente ao balanço família/trabalho, que "vai mudar ao longo do trajecto profissional destas pessoas". "Isso devia fazer logo parte de um plano de desenvolvimento, falando com as pessoas sobre as vagas abertas e fazendo ver que a parentalidade é algo que a organização considera como importante e integrada na sua permanência na instituição, e não uma coisa desagradável. Isto precisa de planeamento", insiste. Diz não saber se o SNS tem as instituições de saúde preparadas para programar, ao longo do tempo, o caminho destes profissionais, mas que "gostaria que assim fosse".

O estudo, apresentado esta terça-feira, aponta a necessidade de um reporte sistematizado sobre os profissionais em prestação de serviços, com todos os dados divulgados quer em número de profissionais, quer em número de horas trabalhadas, "para se poder aferir variações na capacidade de prestação de cuidados de saúde".

"Essa caracterização é fundamental para aferir se o duplo emprego se traduz num aumento efectivo de capacidade, ou apenas num efeito de substituição entre prestadores de cuidados de saúde", referem os investigadores, salientando. "Para além disso, importa compreender se o recurso a prestadores de serviço corresponde a picos temporários ou a soluções para fazer face a necessidades permanentes de alguns serviços".

Três choques numa década

Lembram que o envelhecimento dos profissionais de saúde "implica uma adaptação do sistema de saúde", frisando: "Uma maior proporção de médicos envelhecidos reduz os profissionais de saúde disponíveis para trabalhar em período nocturno ou em urgência".

Para além disso - recorda o documento - a aproximação da idade da reforma de um grande volume de profissionais, em particular de médicos, "coloca um grande desafio à manutenção de capacidades formativas no SNS". "Os próximos anos serão marcados por volumes elevados de aposentações no SNS. O planeamento atempado dessas aposentações é fundamental para minimizar disrupções no normal funcionamento dos cuidados de saúde", salientam os autores.

O mesmo estudo refere que a última década teve três "choques" negativos sucessivos sobre os profissionais de saúde que resultaram na sua exaustão, numa perda de rendimento real e na crescente falta de condições de trabalho em infra-estruturas e equipamentos, que se desgastaram. São eles o programa de ajustamento financeiro e das contas públicas, o período seguinte de reversão de medidas "de um modo que manteve grande pressão" sobre o trabalho dos profissionais de saúde e as exigências trazidas pela pandemia.

"A falta de profissionais de saúde foi a face visível para o cidadão de problemas mais profundos, tendo gerado um retomar da discussão sobre a evolução demográfica das profissões de saúde", lembram os investigadores, sublinhando que o "primeiro passo" na procura da mudança é reconhecer o efeito cumulativo destes três "choques" negativos da última década.

Os autores do estudo defendem que a resolução dos desafios passa por "mudanças que não se limitam à abertura de vagas para formação e de concursos de recrutamento por parte do SNS". Dizem que é preciso "uma diferente capacidade de gestão" para estabelecer, por um lado, condições de atractividade do SNS - cobrindo aspectos como remunerações, equilíbrio vida profissional/vida pessoal, melhoria das infra-estruturas e equipamentos e uma estratégia para desenvolvimento profissional - e, por outro, "aproveitar as potencialidades de reorganização do trabalho nas unidades de saúde, propiciadas quer pela evolução das competências dos vários grupos profissionais da saúde quer pelo desenvolvimento tecnológico". "Todos estes elementos exigem, da decisão pública e da gestão do SNS, criatividade, flexibilidade e agilidade na acção", defendem.

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