“Erro humano” da TAP deixou Raquel sozinha 13 horas no aeroporto de Amesterdão

Raquel Banha tem uma doença neuromuscular e desloca-se em cadeira de rodas. Por erro da TAP, a informação sobre a cadeira não foi transmitida e Raquel não embarcou no voo de regresso a casa.

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Raquel Banha vive em Lisboa e trabalha em apoio ao cliente. Tem 94% de incapacidade física Nuno Ferreira Santos
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Aos 26 anos, Raquel Banha foi pela primeira vez convidada para uma viagem de amigos a outro país, para celebrar o aniversário de um primo. “Fiquei de tal forma eufórica que no dia a seguir não consegui trabalhar nada. Foram três dias de grande adrenalina. Pesquisar voos, convencer a minha amiga assistente pessoal a ir comigo, tentar que os meus pais não falecessem de stress”, escreve, com humor, no blogue Chairleader (um trocadilho com a palavra cheerleader e o facto de se deslocar numa cadeira de rodas). A viagem a Amesterdão reservava-lhe algo que nunca tinha vivido: ver negada a possibilidade de embarcar num voo.​ Mas comecemos pelo princípio.

Seria a primeira viagem sem os pais, e sem financiamento, ao contrário da que fez em Setembro passado, com o Centro de Vida Independente, a Bruxelas, para participar no protesto Freedom Drive. O primeiro voo sozinha significaria também despesas a dobrar: as suas e a da sua assistente pessoal, Ana Lopes, cujo trabalho permite que Raquel seja independente.

Feitas as contas, iria gastar mais de 3000 euros na viagem com destino a Amesterdão, sendo 1500 apenas para despesas da sua assistente pessoal. Por isso, e porque “precisar de assistência não é uma escolha, mas uma necessidade”, pediu ajuda e começou uma angariação de fundos. Em poucas semanas foi atingido o objectivo de 1500 euros em donativos. Estava (quase) confirmada a partida de Lisboa para Amesterdão, a 19 de Abril.

Raquel vive com uma doença neuromuscular congénita e tem 94% de incapacidade física, deslocando-se em cadeira de rodas eléctrica, o que significa que cada viagem de avião é muito mais complexa para si do que para qualquer pessoa sem mobilidade reduzida.

“[Em 2022], com a viagem à Bélgica, embora não estivesse doente e não tenha adoecido na vinda, a verdade é que só com três dias de viagem emagreci, e no dia a seguir ao regresso estive de cama, tal era o cansaço”, explicou Raquel na sua conta de Instagram durante a campanha de angariação de fundos. “Com isto quero dizer que este tipo de viagens, embora seja ‘férias’, é um grande esforço físico e mental.”

Raquel Banha e a assistente pessoal, antes do voo para Amesterdão DR
Raquel Banha e a assistente pessoal, antes do voo para Amesterdão DR
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Raquel Banha e a assistente pessoal, antes do voo para Amesterdão DR

Treze horas no aeroporto de Schiphol

Raquel Banha e Ana Lopes chegaram ao Aeroporto de Schiphol, em Amesterdão, pelas 17h20 de 24 de Abril. Faltavam mais de duas horas para a partida do avião que as traria de volta a casa. No balcão do check-in encontram a primeira barreira a um regresso pacífico. À semelhança do que tinha acontecido no voo de partida, em Lisboa, e depois de toda a informação sobre o equipamento a transportar na cabina e no porão ter sido dada por escrito no momento da reserva, à chegada ao aeroporto todos esses detalhes são pedidos: dimensão da cadeira de rodas, tipo de bateria e respectiva voltagem, descrição dos ventiladores que usa para respirar.

Concluída a primeira etapa, avançam no percurso. Ou avançariam, caso o ambulift, a plataforma que eleva passageiros em cadeira de rodas até ao avião, estivesse disponível. Não estava, nem estaria a tempo do voo. “Por norma, vou com a cadeira de rodas eléctrica até à porta da cabina, através do ambulift, onde passo para uma cadeira particularmente reduzida que me permite não só passar pela porta da cabina, mas também circular no corredor do avião”, explica Raquel ao PÚBLICO. “Assim que faço a transferência, a minha cadeira de rodas eléctrica segue para o porão.”

Sem ambulift, a assistente de Raquel percebeu que tinham de pensar em soluções. Propôs, então, que a cadeira eléctrica fosse despachada directamente para o porão, em vez de transportar Raquel até à porta do avião, e que, com a sua ajuda, Raquel usasse uma cadeira de rodas manual (dada pelo aeroporto) para chegar à cabina. “A Swissport [empresa de handling que representa a TAP em terra no aeroporto de Amesterdão] respondeu-nos que sim — na condição de ser a minha assistente a tratar de toda a logística, pois não poderiam ajudar nem se responsabilizariam por nada —, mediante aprovação do supervisor da TAP”, com quem o operador da Swissport estava em contacto.

Mas a resposta foi negativa, não havia forma de entrarem no avião. “A resposta que nos foi dada foi que o supervisor da TAP não autorizava o meu embarque, mesmo com a alternativa apresentada, pois não tinham informações sobre a cadeira eléctrica.” Ana Lopes insistiu. Pediu para falar directamente com o supervisor da TAP, mas sem sucesso. “Disseram-me que estava numa reunião e que não podia falar com ele, só podíamos falar com a TAP através da linha de apoio ao cliente. Ninguém da TAP nos ofereceu soluções”, explicou.

Questionada pelo PÚBLICO, a companhia aérea portuguesa conta uma história diferente, mas admite o erro. “Devido a um erro humano, os serviços da Swissport no aeroporto de Amesterdão não puderam accionar atempadamente os meios necessários, nomeadamente o ambulift”, lê-se numa resposta enviada por email pelo porta-voz da TAP. “Na impossibilidade de accionar o ambulift, a Swissport procurou activamente uma alternativa e a mesma foi proposta à passageira. Seria possível ter procedido ao embarque com a transferência para uma cadeira de rodas do aeroporto, que transportaria a passageira do check-in até à porta de embarque”, justifica a empresa. “A passageira recusou inicialmente esta alternativa e quando, mais tarde, mudou de ideias e a aceitou, já não havia tempo útil para que a solução alternativa fosse posta em prática.”

Tanto Raquel como a assistente afirmam que esta solução não foi proposta pela Swissport nem pela TAP, mas pelas próprias. A única solução dada terá sido regressarem ao ponto de partida: a bilheteira.

“É obrigação do aeroporto promover o acompanhamento do passageiro da entrada do aeroporto até ao embarque. Dizer ao passageiro que regresse à bilheteira não parece uma solução aceitável”, afirma Magda Canas, jurista da Deco. “E é obrigação da TAP transmitir a informação recebida no acto da reserva à entidade gestora do aeroporto de partida e de chegada.”

O “erro humano” assumido pela TAP e a consequente impossibilidade de embarque levariam Raquel a ficar 13 horas num aeroporto que não conhecia, com a sua assistente pessoal, sem lhes ser oferecida qualquer assistência. Nessa noite, em Amesterdão, “foi criada uma situação grave e desumana, que podia ter posto em risco a minha vida”, conta Raquel. Não lhes foi oferecido alojamento ou alimentação, tiveram de improvisar soluções para ligar à corrente o ventilador de que Raquel depende para respirar, além de depender de medicação que já não tinha consigo.

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Raquel durante a noite de 24 para 25 de Abril no aeroporto de Schiphol DR

Segundo explica a jurista Magda Canas, “cabe à companhia aérea prestar a assistência necessária e alojamento necessário”. “O que diz a lei é que, em caso de recusa de embarque, as pessoas com mobilidade reduzida, como os seus acompanhantes, têm direito à devida assistência: alimentação, bebidas, alojamento.”

Aqui, a narrativa da TAP volta a contradizer as palavras de Ana e Raquel. “Apesar da recusa da passageira em aceitar a alternativa que lhe foi proposta para garantir o embarque, a TAP acompanhou a passageira e a acompanhante até ao balcão do aeroporto de forma a oferecer a mudança da reserva para o primeiro voo do dia seguinte sem custos adicionais, acomodação em hotel e refeições”, alega a companhia. Contudo, “a meio do percurso, a passageira dispensou o atendimento que lhe estava a ser prestado”.

Ana Lopes garante que, naquela noite de 24 para 25 de Abril, “não podiam ter estado mais sozinhas”. Não lhes foi oferecido alojamento nem alimentação. Não foram acompanhadas até qualquer balcão. Não lhes foi sugerido que fizessem qualquer reserva sem custos adicionais. Acabaram por comprar dois lugares num voo da holandesa KLM para a manhã seguinte, por 2250 euros.

“É chocante que a TAP tenha a ousadia de mentir publicamente. Tenho uma doença neuromuscular, insuficiência respiratória e uma incapacidade física atestada de 94%. Em que mundo iria negar tal apoio?”, argumenta Raquel. “Nunca, em momento algum, a TAP/Swissport nos ofereceu acompanhamento para resolver a situação nem acomodação nem refeições.”

“Esperar 13 horas não é razoável, em especial para uma pessoa particularmente protegida pela TAP”, afirma Magda Canas. “A responsabilidade pende sobre a companhia aérea e/ou a entidade gestora do aeroporto.”

Ainda em resposta ao PÚBLICO, a TAP disse “lamentar toda a situação” e vincou que “transporta passageiros com necessidades especiais, incluindo cadeiras de rodas, todos os dias, e tem a maior atenção e consideração por estes casos”. “A regra é que este tipo de transporte de passageiros com necessidades especiais seja realizado sem qualquer contratempo e com sucesso e satisfação do cliente.”

Sendo essa a regra, quem viaja parece insistir em contorná-la. Em Portugal, em 2021, a recusa ou limitação de acesso aos transportes públicos aéreos, terrestres ou marítimos foi a segunda área com maior incidência de queixas (62) por práticas discriminatórias relativamente a pessoas com deficiência (entre as 12 tipificadas no artigo 4.º da Lei n.º 46/2006).

A companhia portuguesa chegou, entretanto, a acordo com Raquel Banha quanto ao valor a ser reembolsado.

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