A esperança das eleições turcas

A Turquia pode ser o país islâmico ocidentalizado que serve de moderador entre o Ocidente e o Mundo Islâmico. Que é, no fundo, papel idêntico ao que está já a assumir na Guerra da Ucrânia.

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Tive ocasião de estar presente na Turquia, em representação do Parlamento português como observador eleitoral da OSCE-PA às eleições turcas, de que saiu vencedor o incumbente Recep Tayyip Erdogan, com 52%, contra o líder da oposição Kemal Kiliçdaroglu que obteve 48% dos votos.

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Apoiantes de Erdogan festejam a vitória deste, na madrugada de 29 de Maio UMIT BEKTAS/Reuters

Escrevo sobre esse momento, intencionalmente mais de uma semana depois, precisamente porque não pretendo falar de passado, mas de futuro. Pretendo abordar a Turquia e a sua evidente importância política e geoestratégica, não apenas na perspetiva do futuro imediato, mas na perspetiva da sua relevância nos realinhamentos sociopolíticos para a Humanidade.

Falho já naquilo com que acima me comprometi: de não falar no passado. Para me referir à “esperança” europeia ou ocidental, porventura excessiva, na vitória de Kiliçdaroglu. As sondagens – todas elas – davam a possibilidade de segunda volta e, muito embora seja verdade que davam Kiliçdaroglu à frente, todas apontavam para uma inevitabilidade de a segunda volta não dar idêntica projeção. Isso agora pouco importa, releva sim que cheguei a Ancara imbuído dos ventos que nos chegavam de possibilidade de destronamento de Erdogan, para chegar lá e perceber que praticamente ninguém acreditava nessa possibilidade. Como se veio a verificar.

É sobre esses ventos que me queria pronunciar. É sobre a tendência irresistível do Ocidente de querer tomar decisões para os países em lugar deles próprios. É o modo sobranceiro como gostamos que as opções sejam as melhores para os nossos pontos de vista, independentemente de quais sejam as melhores do ponto de vista de quem habita nesses países. E isso é algo que devemos evitar. É algo que, ao invés de nos aproximar, nos afasta, que ao invés de trazer força aos candidatos cuja vitória poderia ser alegadamente mais interessante para nós, lhes retira essa força. E esse é um dos exemplos a retirar das eleições da Turquia.

A imprensa internacional, imbuída da tal expectativa de alteração de poder, referiu-se ao resultado das eleições turcas como uma desilusão e até um retrocesso. O que eu considero um erro. Um erro político e diplomático.

Um erro por negligenciar a importância da Turquia para a entrada da Suécia na NATO (como os últimos dias têm tornado evidente, apesar de ter decorrido pouco mais de uma semana das eleições), mas também por desconsiderar o relevo que a equidistância da Turquia tem tido para ser a única plataforma de comunicação entre a Ucrânia e a Rússia, relevante na mediação do acordo sobre cereais e exercendo efetiva mediação entre os dois beligerantes, de que resultou, inclusive, troca de prisioneiros. Se não abordarmos hipocritamente esta matéria, somos forçados a reconhecer que a posição de equidistância da Turquia tem sido útil, incluindo para a UE e para a NATO.

Mas um erro sobretudo por menosprezar o que estas eleições disseram, como pronúncia do povo turco. Umas eleições em que Kemal Kiliçdaroglu conseguiu os mesmos 25 milhões de votos com que Erdogan havia vencido as últimas eleições em 2018. Umas eleições em que a oposição a Erdogan deixou de se situar geograficamente apenas nas regiões do Mar Egeu e passar a incluir quase toda a zona costeira turca (incluindo a mediterrânica), a grande metrópole de Istambul (16 milhões de habitantes) e até a capital do país, Ancara (isto, para além da zona do Curdistão turco, devido ao apoio do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, que apoiou a coligação liderada por Kiliçdaroglu ). Umas eleições nas quais, apesar de Erdogan ter radicalizado o discurso anti-ocidente na campanha da segunda volta, não teve nesse argumentário grande reflexo eleitoral. Umas eleições presidenciais que se seguem a umas eleições locais que deram as seis principais cidades turcas a opositores ao regime de Erdogan.

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Erdogan prestou juramento no passado sábado, 3 de Junho, dando início ao terceiro mandato UMIT BEKTAS/Reuters

Tudo isto são sinais a que não podemos ser indiferentes. São sinais reveladores de um progressivo acolhimento das propostas alternativas. Mas são sobretudo sinais de que a idiossincrática divisão social e cultural que sempre caracterizou a Turquia agora se manifesta também em divisão eleitoral. E isso já é uma novidade. E esse sinal, ínsito na pronúncia popular, não poder ser obnubilado nem desvalorizado.

Não obstante o que refiro, é evidente a natureza iliberal e progressivamente autocrática do regime turco. É evidente, como muito bem fez notar Teresa de Sousa na sua newsletter aqui no jornal PÚBLICO, que as eleições “podem ter sido livres mas não foram justas”, anotando nesse artigo todos os evidentes condicionamentos prévios a esses resultados que vão desde a presença absolutamente desproporcional dos candidatos na comunicação social até ao impedimento artificial de que o presidente de Câmara de Istambul, Ekrem İmamoglu, pudesse ser uma hipótese como candidato da oposição. É evidente e visível a forma como Erdogan procura incrementar a dimensão conservadora e islamista numa Turquia que pretende assuma o papel de “líder do mundo islâmico”.

Mas sendo tudo isto evidente, nada disto retira uma vírgula tanto quanto à importância da Turquia no mundo do século XXI ou à relevância, para esse objetivo, do resultado destas eleições.

A Turquia é um país de enormíssimos contrastes. Um país com zonas, cidades e pessoas perfeitamente europeizadas, em hábitos e conceitos, “uma vasta classe média mais educada e mais aberta ao exterior que vê outro futuro para o país” como bem anotou Teresa de Sousa no artigo já citado. E tem áreas e pessoas de um défice de desenvolvimento chocante, sobretudo se comparado com aqueles seus compatriotas. Estamos habituados a ver diferenças brutais entre os países mais desenvolvidos e os menos desenvolvidos, não estamos habituados é a sentir essas diferenças dentro de um mesmo país. E não estávamos até aqui habituados a que, eleitoralmente, esses contrastes se manifestassem também. Num país que sai destas eleições dividido ao meio entre duas vivências e visões quase radicalmente opostas.

Por isso, talqualmente aqui defendi num artigo sobre a Sérvia e a sua importância para a Europa, defendo coerentemente idêntica posição. A Turquia é efetivamente, como Erdogan o deseja e afirma, a “líder do mundo islâmico”. E isso é muito bom para a UE, não é mau. Isso é uma oportunidade e não uma dificuldade. Porque representa a possibilidade de poder a Turquia, assim o queira e assim o queira o seu povo, ser o país islâmico ocidentalizado que pode servir de moderador entre o Ocidente e o Mundo Islâmico. E não preciso de recordar o quão esta dissensão se tem representado como o maior conflito no mundo do século XXI. Nesse conflito, pelo qual surgiu a Al-Qaeda e o ataque de 11 setembro aos EUA, que proporcionou a Guerra no Iraque destronando Saddam Hussein, que motivou a intervenção no Afeganistão, nesse conflito, dizia, a equidistância política e geoestratégica turca pode – e deve – ser uma enorme oportunidade para a Humanidade. Que é, no fundo, papel idêntico ao que está já a Turquia a assumir na Guerra da Ucrânia. Na linha aliás do que defendeu Nathalie Tocci num artigo no Politico, também citado por Teresa de Sousa.

Existe obviamente essa potencialidade. O povo turco deu um sinal evidente de estar disponível e interessado em poder fazer esse caminho. É importante que saibamos também nós ter a inteligência de saber ler esses sinais.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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