Guiné-Bissau e Suécia: “A nossa luta é a vossa luta”

No início dos anos 70, o PAIGC era o movimento africano que recebia mais apoio sueco. Neste texto, o cientista político Lars Rudebeck, que privou com Cabral na Suécia e na Guiné, recorda esses anos.

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A deputada social-democrata sueca Birgitta Dahl com soldados do PAIGC, na Guiné-Bissau, em 1970 DR
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Suécia, inverno de 2023, o país duramente enclausurado numa Europa de guerra e de crise, prestes a aderir à NATO, apesar das manobras turcas em sentido contrário. Olhar hoje para trás, procurando relembrar a paisagem política de há mais de meio século, é como tentar fixar uma miragem. A maré virou. As diferenças entre essa época e a atualidade dificilmente poderiam ser maiores. Por volta de 1970, no contexto das lutas de libertação contra o domínio colonial português, estabeleceram-se relações de caráter único entre o nosso país nórdico e a longínqua Guiné-Bissau. Como foi isto possível? Como é que as coisas realmente aconteceram?

“A nossa luta é a vossa luta”

Para uma explicação concreta, regresso à tarde de 3 de outubro de 1969. Era eu quem presidia a uma reunião pública no salão principal da Universidade de Uppsala. Amílcar Cabral, líder do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde), e Marcelino dos Santos, vice-presidente da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), foram convidados para apresentarem a visão e os objetivos dos seus respetivos movimentos. Não há registo do número de pessoas que lá estiveram, mas foram muitas. O tema subjacente à minha alocução de abertura, antes de passar a palavra a Amílcar Cabral, era a ideia clássica da estreita ligação entre a liberdade de todos os povos e a paz mundial.

Recordo a atitude de Cabral na Suécia, nesses tempos de crescente abertura ao mundo. Era uma pessoa focada e intensa. O seu estilo de comunicação era transparente e distinto, tanto na fala como na escrita. À medida que, a partir de 1968, começou a fazer sucessivas viagens à Suécia, essas qualidades foram-lhe muito úteis. O objetivo das suas vindas era conquistar apoios para a independência de um pequeno país da África ocidental, quase desconhecido na Suécia até meados dos anos 60, mas agora em luta na linha da frente do "terceiro mundo".

A visão global de Cabral era tão clara quanto a mensagem que dela emanava. A liberdade humana, defendia ele, é indivisível. A sua mensagem era simples e direta, quer se dirigisse a uma audiência na Suécia ou às Nações Unidas em Nova Iorque: “A nossa luta é a vossa luta.” Os paralelismos com as lutas populares pela democracia na Suécia uma ou duas gerações antes não pareciam forçados.

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Amílcar Cabral, cerca de 1969 Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso

A mensagem conquistou apoios. Em poucos anos, o PAIGC começou a receber avultadas “ajudas humanitárias” oficiais, concedidas pelo Parlamento sueco. Além disso, vários grupos de ação solidária e ONG de diferentes setores da sociedade sueca começaram a apoiar o PAIGC. A escala desta resposta positiva pode parecer surpreendente. Do meu ponto de vista, resultou de uma conjugação singular de circunstâncias históricas, quer internacionais quer especificamente suecas, incluindo a presença de movimentos de base popular na vida política. Além disso, foram também, sem dúvida, significativas as qualidades pessoais de determinados atores-chave.

O colonialismo no fim da linha

O fim da década de 1960 foi um período de conturbações mundiais. Nas décadas que se seguiram à derrota da Alemanha nazi e após a criação da ONU, em 1945, os regimes coloniais da velha guarda atingiram o fim da linha. Soldados africanos tinham participado na libertação da Europa. Não era possível voltar atrás. O “terceiro mundo” erguia-se. Em 1970, na sua maioria, as colónias do mundo austral já tinham conquistado a independência e eram Estados soberanos membros da ONU. Apesar das muitas dificuldades e complicações levantadas pela competição entre as superpotências que pretendiam continuar a impor o seu domínio e a sua influência, este foi um tempo de esperança. O desenvolvimento, a democracia e a justiça social estavam no topo da agenda das Nações Unidas. A conquista de um futuro melhor e o estabelecimento de relações mais equilibradas entre o Norte e o Sul não pareciam inalcançáveis.

Portugal e as colónias então por si dominadas eram exceções no contexto mundial que se desenhara. Isolado entre as potências coloniais clássicas do Ocidente, Portugal continuava a agarrar-se firmemente ao passado. O regime fascista de tipo corporativista, instaurado em Portugal, em 1932, por António Salazar, era inflexível. As lutas armadas pela independência iam da Guiné a Angola e a Moçambique. Em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe, a oposição ao domínio colonial era igualmente forte.

Em simultâneo, Portugal era também membro da NATO e, portanto, integrava-se militarmente no bloco das superpotências da aliança ocidental. Por outro lado, a Suécia era indubitavelmente “ocidental” e democrática, mas militarmente não alinhada na Guerra Fria, logo, alheia ao bloco da NATO. Este seu posicionamento criava as condições para um potencial posicionamento independente em matérias de política externa, conforme foi bem visível cerca de 1970, quando a Suécia se opôs à Guerra do Vietname encetada pelos EUA, e no apoio ativo à causa anti-apartheid na África do Sul.

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Repórteres, provavelmente suecos, com guerrilheiros do PAIGC numa mata da Guiné-Bissau Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso

De entre todos os países da Escandinávia, a Suécia tinha especial interesse pelo PAIGC. A Noruega e a Dinamarca eram, tal como Portugal, membros da NATO e, portanto, menos livres em termos da sua política externa, apesar das simpatias políticas pela causa do anticolonialismo. A Finlândia não era membro da NATO, mas, regra geral, mostrava-se mais cautelosa em relação à política externa.

Por toda a Europa ocidental e nos EUA, entre grupos e movimentos de ação solidária, havia grande simpatia pelo PAIGC. Porém, os governos não agiriam firmemente contra um aliado da NATO. Em contrapartida, Portugal podia utilizar, na Guiné, o equipamento militar fornecido por países da NATO, como a França e a Alemanha Ocidental. A Suécia, sendo um país não alinhado, poderia atuar de maneira diferente. Em fevereiro de 1968, por exemplo, Olaf Palme, um preeminente político social-democrata que era então ministro da Educação mas que se tornaria primeiro-ministro cerca de um ano e meio depois, surgiu lado a lado com o embaixador norte-vietnamita em Moscovo numa manifestação em Estocolmo contra a Guerra do Vietname, acontecimento que teve forte impacto internacional.

O PAIGC dependia da União Soviética e do seu bloco socialista para obter apoio militar sob a forma de armamento e munições e até de armamento de defesa antiaérea. Mas a luta pela libertação anticolonialista era sobretudo política e até cultural, conforme Cabral gostava de salientar. Assim, a ajuda não militar de um país como a Suécia era também fundamental — simbolicamente, ao demonstrar fôlego político, mas também, e não menos importante, fôlego material, ao reforçar a capacidade do PAIGC para melhorar as condições de vida no país, demonstrando às populações que a sua luta fazia sentido, traduzindo-se em melhorias na saúde, no ensino e no acesso aos bens essenciais. Foi neste domínio que o PAIGC procurou obter o apoio da Suécia e, em certa medida, de outros países da Escandinávia.

Uma das pessoas essenciais para Amílcar Cabral quando abordou a Suécia foi Onésimo Silveira, o representante do PAIGC nos países escandinavos, sediado em Uppsala, perto de Estocolmo. Silveira (1935-2021, embaixador cabo-verdiano em Portugal, entre muitos outros cargos em meados da década de 2000) foi um intelectual cabo-verdiano com uma ampla experiência internacional. Sentia-se à vontade no ambiente cultural e político da Suécia. Graças aos seus múltiplos contactos, Cabral conseguiu ser apresentado à sociedade civil e política sueca. Em outubro de 1972, foi convidado de honra no congresso do Partido Social-Democrata, então no Governo — apenas três meses e meio antes de ser assassinado em Conacri.

Por iniciativa de Onésimo Silveira, vários escritores e jornalistas, entre outros, foram convidados a visitar as áreas da Guiné controladas pelo PAIGC, viajando a pé com a guerrilha, conhecendo pessoas nas aldeias, entrevistando os seus comités, conhecendo escolas e centros de saúde em funcionamento. Enquanto investigador e cientista político dedicado aos temas da descolonização e do desenvolvimento político, eu próprio visitei, em novembro de 1970, as regiões meridionais e orientais do país ao longo de várias semanas de trabalho de campo e, em abril de 1972, as regiões setentrionais. Na viagem de 1970, participou também Birgitta Dahl, então uma jovem e preeminente deputada social-democrata, que haveria de se tornar membro do Governo e, mais tarde, presidente do parlamento sueco.

À medida que a independência se aproximava, a questão da futura relação entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau não podia continuar a ser evitada. Oficialmente, o PAIGC defendia a criação de “um único Estado”. Onésimo Silveira era a favor da independência separada de Cabo Verde e viu-se obrigado a abandonar o PAIGC. Os seus argumentos foram apresentados em artigos que assinou na imprensa sueca, norueguesa e francesa (Le Monde Diplomatique, junho de 1974), poucos meses antes de a Guiné-Bissau ter sido unanimemente aceite, a 17 de setembro de 1974, como 126.º Estado-membro da ONU. Um ano mais tarde, a 16 de setembro de 1975, Cabo Verde foi também aceite nas Nações Unidas enquanto Estado soberano de pleno direito.

Ajuda oficial da Suécia

No contexto político acima descrito, a ajuda oficial sueca ao PAIGC enquanto movimento de libertação nacional aumentou rapidamente de um milhão de coroas suecas (à data, cerca de 200 mil dólares), constantes no orçamento de 1969/1970, para 22 milhões de coroas suecas no orçamento de 1974/1975 (dados estatísticos oficiais da Suécia). A aplicação prática dessas verbas foi decidida conjuntamente pelos responsáveis da Agência Sueca para o Desenvolvimento Internacional e pelos representantes do PAIGC, que se deslocaram a Estocolmo para especificarem as suas necessidades.

Os dados estatísticos demonstram claramente a importância comparativa que os doadores suecos atribuíam ao PAIGC, por comparação com outros movimentos beneficiários deste tipo de ajuda. Além do PAIGC, a lista incluía também a Frelimo em Moçambique, o MPLA em Angola, a ZANU e a ZAPU no Zimbabwe, a SWAPO na Namíbia, e o ANC na África do Sul. Em números redondos, a verba total atribuída a estes movimentos nos cinco anos fiscais de 1969/70 a 1974/75 ascendia a 91 milhões de coroas suecas. Cerca de 60% desse valor, ou seja, 54 milhões, era atribuído ao PAIGC. Esta ajuda consistia em materiais para a saúde e a educação, meios de transporte e bens essenciais de consumo, que eram distribuídos pela rede de armazéns do povo existentes nas zonas do país controladas pelo PAIGC.

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O Nosso Livro 2.ª Classe, concebido pelos Serviços de Instrução do PAIGC — Regiões Libertadas e impresso em Uppsala, Suécia

Do meu ponto de vista, não há dúvida de que Amílcar Cabral teve grande importância no processo de levar a Suécia a participar na etapa final da descolonização africana. É possível confirmá-lo em detalhe na documentação disponível. Cabral visitou a Suécia num momento histórico muito particular e a sua mensagem pegou. A resposta que conseguiu obter reforçou o PAIGC, ao facilitar a mobilização popular necessária à vitória. Indiretamente, e na medida em que o apoio sueco de facto reforçou o PAIGC numa etapa decisiva, a própria queda da ditadura em Portugal, em 1974, pode ter sido acelerada por esta cooperação. Trata-se de uma possibilidade que merece ser investigada.

Entretanto, passou-se meio século. O momento em que Amílcar Cabral despertou o reconhecimento mútuo no seio da sociedade sueca desvaneceu-se. Ao longo das duas décadas que se seguiram à independência, a Guiné-Bissau foi um parceiro prioritário da cooperação sueca para o desenvolvimento. Porém, pelo menos tanto quanto sugerem os dados estatísticos relativos à cooperação, os laços tangíveis afrouxaram. Desde 2000, não há embaixada sueca em Bissau. A cooperação oficial é quase inexistente. O “desenvolvimento” é difícil. Mas a interdependência mundial é mais forte do que nunca. Resta saber como lidar com ela.


Ler mais:

Lars Rudebeck, Guinea-Bissau. A. Study of. Political Mobilization. The Scandinavian. Institute of African Studies, Uppsala. 1974.

Lars Rudebeck, "Reading Cabral in 1993", in Review of African Political Economy, 1993.

Tor Sellström, A Suécia e as Lutas de Libertação Nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, Hamlstad, Nordiska Afrikainstitutet, 2008.


Lars Rudebeck é Professor emérito de Ciência Política na Universidade de Uppsala, Suécia.

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