O outro dilema de Galamba

É isso mesmo: o ministro tem de tomar uma decisão quanto à proposta da tecnoestrutura, antiga, tirada da arca congeladora e requentada, de manter a bitola ibérica na Linha de Alta Velocidade.

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Decisão sobre a bitola da Linha de Alta de Velocidade está na mesa do ministro das Infra-estruturas, João Galamba Nuno Ferreira Santos
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1. Na Comissão de Inquérito à TAP passou despercebido o exemplo dado por João Galamba para ilustrar os casos em que uma reunião preparatória da tutela com os tutelados faria sentido: sensibilizar a IP, Infraestruturas de Portugal, para as opções políticas do Governo, em matéria de ferrovia. É isso mesmo: João Galamba tem um (mais um) difícil dilema pela frente: o que decidir perante a proposta da tecnoestrutura, antiga, tirada da arca congeladora e requentada, de manter a bitola ibérica na Linha de Alta Velocidade (LAV).

2. A questão pode sintetizar-se assim: depois de décadas a queixarmo-nos de que a bitola ibérica dificulta as conexões europeias e afecta a nossa competitividade, agora que, finalmente, decidimos avançar para uma nova LAV vamos manter a mesma bitola do séc. XIX ? É deveras surpreendente e merece bem uma ou várias reuniões preparatórias... O povo não percebe. Alguns técnicos também não. Os políticos devem ouvir os técnicos para tentar perceber. Mas esta decisão não só não é tecnicamente pacífica, como é estrategicamente muito discutível. Acresce que não é apenas para um ciclo orçamental. Não pode, por isso, ser apenas determinada pela variável contabilística ou eleitoral. É preciso decidir para o longo prazo.

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3. A proposta da IP suscita perplexidade. O pasmo é tão maior quanto é sabido que todas as novas linhas de passageiros em Espanha (excepto uma na Galiza) estão a ser construídas em bitola europeia. A justificação normalmente apresentada pelos responsáveis (alíás, muito competentes, o senhor secretário de Estado Frederico Francisco e o sr. eng. Carlos Fernandes, vice- presidente da IP) é a de que existem soluções de composições “bi-bitola” ou de travessas polivalentes ou com terceiro carril, que permitem a circulação nas duas bitolas ou a adaptação posterior das travessas, se a decisão for a de migrar para a bitola europeia.

4. Bem sabemos, também, que a questão da bitola não é o único factor que condiciona a conectividade: haverá que garantir a interoperabilidade dos sistemas de sinalética e de segurança (Sistema Europeu de Gestão do Tráfego Ferroviário-ERTMS, as slots nas linhas internacionais. Claro que a conectividade depende de terceiros, designadamente de Espanha e de França, da normalização europeia do software, da tensão elétrica e da gestão coordenada.

5. Não obstante essas outras condicionantes exógenas, manter uma bitola própria portuguesa acrescenta complicações e não parece ter justificação de futuro. Pelo contrário, na medida em que será mais restrito o mercado de composições bi-bitola, os custos de exploração/manutenção serão presuntivamente maiores; por outro lado, o custo financeiro e operacional de paralisar uma linha para fazer a migração de bitola é temerário. Ou seja, tudo se resolve, mas com perda de competitividade e novos e enormes custos no futuro.

6. Se estas dúvidas já não bastassem, a perplexidade aumenta quando se sabe que as orientações europeias mais recentes para a rede europeia de transportes ferroviários (RTE-T) estabelecem o ano de 2030 como data limite para que os Estados Membros adoptem a bitola europeia. Em termos de ferrovia e de contratação pública e de obra, 2030 é já amanhã. A que título, então, é que Portugal está a negociar uma excepção para poder continuar em bitola ibérica?

7. O racional subjacente à opção da IP parece ser o de a bitola ibérica permitir conectar em comboios LAV as cidades actualmente servidas pela Linha do Norte. Isso permitiria manter o projecto antigo – com mais de dez anos – apresentar serviço e não perder tempo com mais estudos, como seriam os necessários para levar a LAV em bitola europeia a cidades essenciais para a procura (Aveiro, Coimbra e Leiria). Acena-se com a cenoura da LAV nas estações actuais e a redução dos tempos de viagem e calam-se os autarcas. E acena-se aos Governos com soluções rápidas, como os governantes gostam, porque são curtos os ciclos de poder. O futuro tem, porém, muito mais tempo.

8. A questão no transporte de mercadorias é igualmente complexa: os portos de Leixões e Aveiro como é que se conectam à Europa? Vamos ter linha Aveiro/Salamanca mista, para passageiros e mercadorias e assim conectar Viseu ou vamos ficar apenas com a Linha da Beira Alta modernizada? E a interoperabilidade com as linhas espanholas e as demais europeias como se garante? Como nos passageiros, só um forte poder europeu e uma política com músculo financeiro e integrada pode resolver este problema. Nem Espanha nem os outros países europeus têm qualquer interesse em facilitar a competitividade das nossas empresas exportadoras. Importa que os financiamentos europeus a esses países, para a ferrovia, sejam condicionados à interoperabilidade com Portugal.

9. A opção entre bitola ibérica ou bitola europeia, em si mesma e só por si, não parece representar custo acrescido relevante, uma vez que, seja qual for a opção, se trata de uma linha nova. Há um custo tempo (alargar os estudos para a localização das novas estações de Aveiro e Coimbra na nova linha) e um custo político (explicar porque é que é preferível fazer não tão depressa, mas bem e sem perda de fundos).

10. João Galamba não tem, pois, apenas o dilema do aeroporto para decidir (já agora: o traçado de uma Linha de Alta Velocidade não devia ser congruente com a localização do aeroporto?).Tem, igualmente, de tomar uma decisão estratégica na ferrovia: optar pela vantagem política de curto prazo, aproveitar os estudos que herdou e manter a bitola ibérica? Ou optar pelas vantagens de longo prazo para o país, aprofundar os necessários estudos e adoptar a bitola europeia? A roupa suja já foi quase toda lavada. O ministro precisa agora de serenidade para ponderar bem decisões essenciais ao nosso futuro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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