Serão os valores o verdadeiro luxo?

Educar uma criança a acreditar que terá sempre o que quer e o que há de melhor é um convite ao fracasso, sobretudo o dela.

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"Educar uma criança a acreditar que terá sempre o que quer e o que há de melhor é um convite ao fracasso" @petercalheiros
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Confesso que tive alguma dificuldade em começar este artigo atendendo ao tema da revista, provavelmente porque, à primeira vista, me pareceu estranho relacionar crianças com o luxo, dada a associação rápida que se faz ao dinheiro, sem esquecer que entre a população há níveis elevados de pobreza, sobretudo quando se vive um momento socioeconómico difícil.

O cair da noite trouxe-me uma resposta que, na verdade, está ligada ao meu trabalho com famílias. O luxo, e aquilo que algumas pessoas podem ter e outras não, relaciona-se de facto com o dinheiro, porém, de igual forma, com valores.

E como é que isto tem impacto na parentalidade? De facto, um dos grandes desafios inerentes à parentalidade é a construção, a transmissão e a modelagem pelos pais de uma vida significativa baseada em princípios, comportamentos, atitudes e pensamentos com os quais pretendem que os seus filhos se identifiquem, de modo a viabilizar a formação da sua identidade enquanto pessoa inserida numa sociedade.

Estes princípios irão permitir, por exemplo, que as crianças consigam aceitar e lidar com as diferenças de estatuto socioeconómico entre si e os seus colegas. Se é fácil pôr isto em prática com uma criança ou um adolescente? Em alguns casos, pode ser mais custoso, devido a outras influências do ambiente e às particularidades de temperamento de cada um. Porém, uma coisa é certa, a convicção, a modelagem e a coerência dos pais contribuem para o sucesso de uma parentalidade baseada em valores.

Estes devem ser transversais a todas as tipologias familiares, na medida em que as crianças que têm mais devem ser ensinadas a não ostentar nem gabar, a partilhar sempre que possível, e, sobretudo, a serem empáticas com os outros. Aquelas que não têm devem ser ensinadas a viver de acordo com as capacidades financeiras da sua família, sem o risco de os pais recorrerem a empréstimos e acumularem dívidas para manter um falso estilo de vida. A criança vai fazer birra e o adolescente vai sentir-se frustrado? É possível e até desejado, faz parte do seu curso desenvolvimental normal. A preparação da criança pelos pais e a criação de valores claros desde cedo fará a diferença no seu ajustamento à situação.

De igual forma, a gratidão é algo que deve ser cultivado. A ideia é ensinar as crianças a serem gratas pelo que têm, de modo a usufruírem de uma vida gratificante, sem estarem presas somente ao material. É igualmente importante valorizar as suas competências, contribuindo para fortalecer a auto-estima e reduzir sentimentos de inveja ou inadequação.

O dia-a-dia faz-nos andar em ritmo acelerado, e a falta de tempo e o cansaço dominam as nossas vidas, culminando em pouco convívio de qualidade em família onde estes valores deveriam ser abordados. Quando as situações surgem e a criança se mostra frustrada ou revoltada por não poder ter o mesmo que o colega, torna-se difícil para os pais negarem, mantendo-se fiéis aos seus valores.

Surge, então, a culpa e o receio de que a criança ou jovem se sinta inferiorizado, infeliz ou que fique traumatizado. Um pensamento disparatado? Em grande parte, sim, dado que a ausência de um telemóvel de última geração não traumatiza nem inferioriza ninguém. Porém, a culpa tem um poder muito grande e aproveita-se da fragilidade das pessoas para implantar dúvida, assim, os pais caem desde muito cedo na armadilha e começam a dar e dar, criando o luxo, mesmo aqueles que não podem!

Educar uma criança a acreditar que terá sempre o que quer e o que há de melhor é um convite ao fracasso, sobretudo o dela, sendo isto transversal nos bens materiais, nas relações, no emprego, etc.. Na verdade, este tipo de atitude cria a falsa sensação de poder e, mais grave, associa os bens materiais ao afecto. Isto é válido para quem tem capacidade financeira ou não.

Viver desejando ter “porque sim”, e, quando consegue o objecto, este perde rapidamente o valor, causa constante insatisfação, podendo gerar dificuldades, estas sim, preocupantes no que concerne ao desenvolvimento da personalidade e da forma como a criança ou o jovem se vê a si próprio e se relaciona com os outros. Não serão, então, os valores o verdadeiro luxo?

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