Direito a ser ineficaz

Sentia em todos os sectores da sua vida uma pressão para ser eficaz, não podia falhar, errar parecia desapontar todos à sua volta. “Não sou uma máquina”, dizia.

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Megafone P3: Direito a ser ineficaz Bruno Henrique/Pexels
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"Não sou uma máquina." Aquilo que parecia uma evidência tornava-se cada vez mais necessário afirmar várias vezes ao dia a interlocutores diferentes, uma posologia auto-receitada que era premente cumprir, sob pena de adoecer física e mentalmente.

"Não sou uma máquina", dizia aos filhos sempre que queriam os seus pedidos atendidos com a imediatez de um robô, fosse a semanada em dinheiro líquido no dia que estipularam no calendário ou o prato pronto para o jantar tal qual o apetite lhes sugeria naquele dia.

"Não sou uma máquina", dizia ao marido que lhe pedia um favorzinho na cama depois da meia-noite, quando estava acordada há mais de catorze horas praticamente sem descansar, nem mesmo ao almoço parou de responder a emails e telefonemas.

"Não sou uma máquina, desculpe", respondia ao chefe, quando reclamava pelas várias tabelas de Excel para estudar com segurança os novos dados da empresa. Até às amigas era forçada a dizer "não sou uma máquina", quando lhe apontavam o aspecto cada vez mais desleixado, as unhas por arranjar, o cabelo mal pintado, os quilos a mais que ganhou no último ano.

Sentia em todos os sectores da sua vida uma pressão para ser eficaz, não podia falhar, errar parecia desapontar todos à sua volta. Até o cão parecia reclamar eficácia quando não o levava imediatamente à rua aos primeiros latidos na direcção da porta de casa. Começou também a dizer-lhe "não sou uma máquina", embora soubesse que de todos os seus interlocutores o cão era único que desconhecia o conceito "máquina".

Muitas pessoas reagiam de forma reprovadora quando respondia com aquela frase, consideravam-na rude. Como se verbalizar a evidência de não ser uma máquina fosse surpreendente ou mal-educado. Por isso não mudou o escudo que a protegia de tantas exigências. Naquela tarde em que adormeceu por momentos no autocarro de volta a casa depois de um dia de trabalho, sonhou que era uma máquina de snacks.

Uma máquina instalada numa estação de comboios, cuja vista dava para a linha férrea e para uma planície praticamente deserta. Em que estação estaria não sabia dizer, certamente a Sul do país, dado as oliveiras que conseguia distinguir ao longe no horizonte. Uma máquina numa estação com pouco movimento, de vez em quando um comboio chegava e partia.

Alguns passageiros saíam, outros embarcavam. Sentiu uma paz imensa, uma paz de máquina. Ainda por cima, uma máquina poucas vezes requisitada. Um rapaz que não devia ter mais de doze anos aproximou-se, colocou moedas, o valor exacto, e ela deu-lhe um chocolate. Viu o rapaz de cabelo curto castanho-claro afastar-se para junto de dois adultos, provavelmente os pais, satisfeito com o chocolate que lhe vendera. Não sentiu nada, foi eficaz.

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