Os Truta no Buraco destronam a História épica

Grandes figuras históricas e suas relações acidentadas com aves: Os Mortos Têm Todos as Mesmas Penas instala-se esta quinta-feira no Bar Damas, em Lisboa, à boleia do Festival Temps d’Images.

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Nietzsche e Mao Tsé-Tung: todos os encontros são possíveis neste espectáculo dos Truta no Buraco TRUTA NO BURACO
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Andreia Farinha não se espantaria se estivesse no radar de alguma polícia de investigação. Não porque leve uma vida dedicada ao crime, mas porque o histórico de navegação do seu computador deve disparar uns quantos alertas. É o que dá trabalhar com uma estrutura teatral, a Truta no Buraco, experimentada em “pesquisar histórias completamente absurdas”.

Fora de piadas, é isso que acontece também em Os Mortos Têm Todos as Mesmas Penas, nova criação do grupo, que se estreia no Festival Temps d’Images, com apresentações no Bar Damas, em Lisboa, de 1 a 3 de Junho, e que parte da vontade de pesquisar e encontrar uma tradução em palco da relação entre aves e ditadores. Sim, aves e ditadores, com a largueza suficiente para, além de tais vilões, passar a incluir várias figuras históricas, sempre a partir de episódios que metam aves ao barulho.

Como é que começa tamanha loucura? Começa, antes de mais, no excesso de materiais recolhidos para a anterior criação Eles Passarão, Tu Passarinho, que, por sua vez, tinha por ponto de partida aquela que ficou conhecida como “a maior festa do mundo”. Em Outubro de 1971, Mohammed Reza Pahlavi, Xá do Irão, organizou um gigantesco evento nas ruínas da antiga Persépolis, num oásis construído expressamente para a ocasião. Para receber as centenas de convidados da elite e introduzi-los num autêntico paraíso na terra, comprou 50 mil aves canoras que deviam dar vida ao jardim.

“Essa festa tem mil pormenores obscenos”, conta Andreia Farinha, que se deparou com a história num documentário. “Entre eles, o dos 50 mil pardais que, obviamente, morreram antes da festa, deixando aquele deserto juncado de cadáveres de pássaros”. Foi aí que pensou: “Temos de fazer uma peça sobre aves e ditadores.”

Como antes escrevíamos, nem só de ditadores vive Os Mortos Têm Todos as Mesmas Penas. No palco das Damas encontramos Friedrich Nietzsche (“trendsetter de bigodes”), D. João VI (“expat exilado” e entusiasta de coxinhas de frango), Shakespeare (“dramaturgo de identidade incerta), Mao Tsé-Tung (“autor best-seller e promotor de retiros de self-awareness), Hitler ou Isabel II, apresentados numa canção no início do espectáculo em género de lengalenga infantil. Mas encontramos sobretudo um espectáculo assente num humor cáustico, num atropelo de linguagens (teatro, vídeo, música) alimentado pelas várias narrativas sempre com aves no menu.

Listam-se, por exemplo, as preferências gastronómicas dos abutres, descreve-se o papel de uma pomba na investigação do homicídio do estilista Gianni Versace, detalham-se as várias espécies que dedicam vidas inteiras à sedução, conta-se a história dos pardais que foram declarados inimigos públicos na China de Mao (durante a Campanha das Quatro Pragas) e exterminados –​ daí resultando uma praga de insectos que destruiu as colheitas, foi uma das causas da Grande Fome Chinesa e obrigou à subsequente importação de pardais soviéticos para reequilibrar o sistema ecológico.

Enquanto Andreia Farinha fala de “desmistificar o carácter épico da História” como objectivo dos Truta no Buraco, João Melo acrescenta que em Os Mortos Têm Todos as Mesmas Penas lhes interessa explorar “o papel que as aves tiveram na história do desastre da humanidade”. Mas aquilo de que este espectáculo fala, sobretudo, é da estupidez e do ridículo humanos, destilados a um ritmo delirante.

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