Já transgredimos sete dos oito limites que tornam a Terra habitável

Estudo da revista Nature oferece um diagnóstico grave do planeta, mas também indica os limites a respeitar se quisermos uma recuperação da Terra “feita com justiça”.

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A água de que dispomos no planeta constitui dois dos parâmetros analisados no estudo da Nature Reuters/Carlos Barria
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Se a Terra fosse um paciente num consultório, o que diria um médico ao auscultar os órgãos vitais? A resposta clínica possível está plasmada num estudo sobre os limites do nosso planeta, publicado esta quarta-feira na revista científica Nature. Já estamos hoje a transgredir as fronteiras seguras de sete dos oito sistemas terrestres que tornam a vida possível (e agradável). O artigo oferece-nos um diagnóstico difícil, mas também um conjunto de pistas para desenharmos um plano de recuperação que não deixe ninguém para trás.

“Uma pessoa vai ao médico e recebe o diagnóstico de um problema sério. Não é uma doença crónica, mas algo que prova que todos os órgãos do sistema estão interconectados. Não podemos estar só a olhar para os pulmões se estamos prestes a arruinar o fígado, os rins, o sistema circulatório. A única forma de salvar os pulmões é olhar para todo o sistema em conjunto. A coisa boa que este estudo nos dá é a definição clara dos limites dentro dos quais temos de viver para alcançar a cura”, afirmou o co-autor Johan Rockström, director do Instituto de Potsdam de Investigação sobre o Impacto Climático, numa conferência de imprensa virtual.

O estudo da Nature incorpora, pela primeira vez, a justiça como um dos elementos da análise científica. Nesse sentido, não basta haver água potável suficiente no planeta, é preciso que este bem essencial esteja acessível a todos num determinado perímetro, por exemplo. Por outras palavras, os cientistas identificaram também os limites nos quais os seres humanos estariam protegidos de danos significativos causados pela mudança do planeta.

Não existe um planeta seguro sem justiça”, sublinhou a co-autora Joyeeta Gupta, professora de ambiente e desenvolvimento no Sul Global da Universidade de Amesterdão, na Holanda.

Pensar em justiça quando traçamos fronteiras seguras na Terra não é um exercício fácil. Já eram exigentes os limites necessários para manter a resiliência dos ecossistemas, deter o aquecimento global e não desbaratar os recursos do planeta. Se incluirmos a justiça nessa equação, então teremos balizas muito mais rígidas a respeitar, indica o estudo elaborado por mais de 40 cientistas da Comissão da Terra.

A Comissão da Terra consiste numa equipa internacional de cientistas apoiada por organizações como a União para a Conservação da Natureza, cuja ambição é elaborar investigação complementar à do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) ou da Plataforma Intergovernamental de Política de Ciência sobre Biodiversidade e Serviços do Ecossistema, para identificar os limites dos sistemas que tornam o planeta habitável.

Oito sistemas terrestres interligados

O estudo da Nature considera oito limites que devemos respeitar para garantir um planeta seguro e habitável: o clima, a biosfera (aqui dividida em ecossistemas naturais e aqueles que têm uma função específica, como a pastagem ou a agricultura), a água (subterrânea e à superfície), nutrientes que tornam o solo fértil (fósforo e azoto) e os poluentes atmosféricos.

Peguemos no exemplo do uso do solo, que recai sobre dois dos limites da biosfera estudados pelos cientistas. “No caso dos ecossistemas naturais, identificámos que as fronteiras seguras devem estar na preservação de 50 a 60% da área do planeta, sendo que agora estamos num patamar de 45 a 50%. Isto quer dizer que estamos um bocadinho abaixo”, explicou ao PÚBLICO o co-autor David Obura, professor da Universidade Nacional Australiana, na conferência de imprensa.

No que toca à parte da biosfera funcional, ou seja, a superfície da Terra que já foi profundamente alterada mas que presta serviços às pessoas – através da agricultura, do pastoreio e da habitação, por exemplo –, a avaliação deve ser feira considerando áreas separadamente. Só assim é possível considerar a questão da justiça já aqui mencionada.

“Nós identificámos que seria necessário determinar os níveis localmente e que os serviços deveriam estar acessíveis às pessoas daquela área. Escolhemos como unidade um quilómetro quadrado. Para cada quilómetro quadrado, devemos ter entre 20 e 25% do território com ecossistemas seminaturais. Podem ser zonas de vegetação restaurada, mas funcionais o suficiente para prestar serviços às pessoas”, respondeu David Obura ao PÚBLICO.

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No que toca à biosfera funcional, metade da Terra atende aos critérios preconizados pelo estudo e a outra metade não. Para facilitar a visualização das transgressões a este e outros limites definidos pelo estudo, os autores elaboraram uma cartografia dos pontos do globo onde há maior número de transgressões às fronteiras da Terra (ver mapa).

A informação contida no estudo agora publicado pode guiar governos e empresas na avaliação de riscos e oportunidades enquanto definem planos de acção climática e conservação da biodiversidade. O objectivo dos autores é que esta análise seja “a coluna dorsal das práticas e das metas de sustentabilidade da próxima geração”, que não devem estar focadas unicamente no clima mas antes considerar a interdependência dos sistemas terrestres.

Os autores não consideram que a Terra seja hoje um “paciente terminal”. Mas uma mudança rápida de estilo de vida é necessária para que recuperemos os sistemas do planeta, sugerem os cientistas. Agora que as fronteiras já estão definidas, os autores afirmam que é o momento de trabalhar na definição científica dos “remédios”.

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