Alerta: o Tribunal de Schrödinger foi tomado pelo PS! Só que não

Este presidente do TC será tão influente como qualquer outro, pelo que sugerir um “sequestro” do tribunal por parte do Apparat socialista é, no mínimo, pouco sério.

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O físico Erwin Schrödinger apresentou em 1935 uma teoria que visa demonstrar a existência de um paradoxo na interpretação de Copenhaga da mecânica quântica, imaginando-a aplicada a um gato fechado numa caixa, de forma a não estar apenas vivo ou apenas morto, mas simultaneamente nos dois estados.

Perante ecos nos media e redes sociais que sustentam uma pretensa “tomada de assalto” pelo aparelho socialista a instituições do Estado, tentemos uma resposta a este discurso que se tem por demagógico e populista.

Centremo-nos no suposto facto de o Tribunal Constitucional (TC) estar “nas mãos de um homem próximo da máquina socialista” – tese que insinua que o recém-empossado presidente, por ter sido indicado pelo PS, originará um défice de “imparcialidade”.

Trata-se de uma falácia, como veremos.

O TC é composto por 13 juízes, dez dos quais eleitos pela AR em lista fechada por uma maioria de 2/3 dos deputados presentes desde que superior à maioria de deputados em efetividade de funções. Como se sabe, tal maioria só é possível com os votos dos dois maiores partidos, PS e PSD, tornando necessário um acordo prévio entre ambos sobre os nomes a colocar à votação.

Ora, o Conselheiro José Abrantes foi eleito por 194 votos: o PS tinha, à data, 108 deputados e o PSD 79, ou seja, sem a anuência (pelo menos) do PSD, não seria eleito. Os restantes três juízes são cooptados pelos dez eleitos pela AR, precisando de sete votos. Por fim, estes 13 juízes elegem o seu presidente por, pelo menos, nove votos ou, se tal não suceder em oito rondas, é eleito quem primeiro obtiver oito votos.

Estes são as regras constitucional e legalmente prescritas. Daqui para a frente, há que dizê-lo, é política.

Há que admitir, desde já, a dupla natureza da justiça constitucional: jurídica e política, pela forma de composição do TC e pelos temas que lhe são colocados. Ela própria vive um dilema desde a sua génese: por um lado requer-se que seja politicamente independente, por outro, seja qual for o sistema constitucional em análise, sempre se achará na forma de composição uma preocupação política em que cada força tenta obter, pelo menos, um equilíbrio impeditivo do controlo pelas outras forças sobre as decisões do órgão.

Porém, facto é que, dentre as formas possíveis de prosseguir a independência, estas implicam sempre uma inevitável politização face ao outro objetivo a alcançar: a garantia de alguma legitimidade democrática, refletindo na composição do TC as sensibilidades políticas conjunturais da sociedade.

Eis o paradoxo da jurisdição constitucional.

Com efeito, logo em 1982, foi feito um “acordo de cavalheiros” entre PS e AD. Porém, também pelo aumento do mandato de juiz para nove anos e a fixação do mandato de presidente em metade disso, esse acordo hoje passa pela indicação, por cada bloco, de cinco juízes eleitos pela AR e um dos cooptados, pela alternância da presidência entre as duas fações a cada 4 anos e meio e pela neutralidade política do terceiro cooptado.

Pede-se, assim, ao TC o inconciliável: alguma legitimidade democrática – pelo processo de designação dos juízes – e, ao mesmo tempo, imunidade face ao conflito político-partidário.

Pergunta-se: poderia não ser assim?

Tendo de se pronunciar sobre questões de natureza (também) política e tendo o poder de invalidar atos do legislador, é evidente que o TC corre o risco de se tornar numa instância de recurso do jogo parlamentar em que as forças políticas continuam a lide por outros meios.

Mas o que significa dizer que há uma politização do TC?

Contrariamente à discussão tradicional (Kelsen vs Schimtt), hoje, quando se usa esta arma de arremesso, pretende insinuar-se que os juízes do TC não decidem, como os outros juízes, de acordo com a sua consciência, mas com “a voz do dono”.

Ora, esta é uma conceção perversa: não só os estudos empíricos sobre comportamento judicial não comprovam esta tese, como da “consciência” de um juiz fará parte a sua “ideologia” – devendo, então, distinguir-se independência ideológica de partidária.

Haverá, então, como implícito na crítica, algo a temer pelo facto de o atual presidente ter sido nomeado pelo PS e ter tido atividade política?

Parece inútil negar que as suas convicções relevam nas decisões dos juízes: eles não deixam de ser humanos com mundividências próprias só porque investidos num cargo. Dito isto, obviamente, este presidente será tão influente como qualquer outro, pelo que sugerir um “sequestro” do TC por parte do Apparat socialista é, no mínimo, pouco sério.

Aqui chegados, e assumindo este contexto, vejamos:

Começando pelo bloqueio na cooptação de novos juízes, pelo terminus do mandato dos cooptados. Com efeito, os juízes eleitos pela AR já deviam ter cooptado os restantes (houve uma tentativa falhada, estranhamente tornada pública), tendo surgido várias teorias explicativas deste impasse, cada qual com o seu grau de verosimilhança.

Em vez de mais uma teoria, proponho um exercício teórico. Façamos, um raciocínio abstrato com base, antes de mais, no destaque de dois momentos-chave:

No momento 1) os dez juízes eleitos pela AR têm de cooptar os restantes três. A essa escolha, segue-se o momento 2), a eleição do presidente, onde já não votam dez, mas 13 juízes.

Admitamos que antes do momento 1) os habituais dois blocos se encontram numa relação de forças de cinco para cinco mas suponhamos também que essa divisão pudesse não ser estritamente esquerda/direita (ou Lisboa/Coimbra), mas uma separação também entre os que tinham em vista, no momento 2), eleger X e os que apoiavam Y.

Note-se que restam ainda mais de dois anos de presidência por um juiz necessariamente da ala PS, o que baralharia ainda mais as contas: a indicação de dois dos cooptados faz-se por proximidade política, mas, se ao objetivo de manter o equilíbrio de forças somarmos o de eleger o presidente, cada nome indicado deveria satisfazer simultaneamente estas duas preocupações e já não teríamos, então, as duas tradicionais fações, mas um mix daquelas com outras duas: a que pretende eleger X e a que quer Y.

Ora, se cada fação mix controlasse cerca de 50% dos votos isso equivaleria, na prática, a um poder de veto sobre os nomes indicados pela fação oposta. Neste cenário, teríamos um impasse apto a bloquear a cooptação dos juízes em falta, uma vez que nenhum dos blocos aceitaria um nome que não fosse potencialmente votar no seu candidato, pelo que talvez fosse inútil abrir esse processo, já que nenhum resultado seria alcançável.

Que alteração de circunstâncias teria, então, permitido desbloquear esta situação?

Porventura nenhuma, apenas a consciencialização por parte dos conselheiros de que a pressão social seria já insustentável (pairando até sobre o TC acusações de que tal inação teria em vista que os juízes cujo mandato atingisse os dez anos pudessem aceder ao regime de aposentação especial, o que estava a causar um grave dano reputacional sobre juízes e TC). A isto poderá acrescer o facto de toda esta matemática ser (um pouco) mais fácil num momento em que a cooptação se fizesse em bloco, o que só sucedeu em março.

Em suma, esta hipótese abstrata passa pela assunção de que possam ter sido as divergências quanto à escolha do presidente a contaminar o processo de cooptação, e não o contrário.

Ainda em relação à questão sobre se esta politização pode significar uma captura partidária, a resposta só pode ser negativa.

Uma coisa é admitir que não há como contornar a politização do TC, outra será a de daí fazer decorrer a conclusão de que a eleição deste presidente específico colocaria em perigo a realização da justiça por pôr o tribunal a funcionar sob orientação de um partido – não só tal não é possível pelos poderes do presidente, como tão-pouco o será pelo equilíbrio de forças existente no órgão.

Há, sem dúvida, vários aspetos sobre o funcionamento do TC que merecem ser debatidos e críticas que lhe podem ser formuladas.

Diria, contudo, que esta acusação simplificadora de questões que são complexas, por criar um falso alarme, acaba por ser pouco mais do que um desperdício populista de megabytes.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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