Quanto tempo dura uma geração?

O que eu sei é que esta doença é o que me mantém viva. Chamo-lhe doença, mas podia dar-lhe outro nome, por exemplo, persistência. Há qualquer coisa dentro de mim que me mantém activa.

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Tenho estado doente, o especialista ainda não conseguiu identificar qual é o problema, por isso calculo que seja grave — os problemas que os deixam sem solução são os mais especiais. Começou pelo sono, não dormia e deixei de ter fome. Punha a comida na boca e tudo se transformava numa enorme bola que rolava e rebolava entre a língua e os dentes, mas nunca chegava a marcar golo nas goelas.

Via-me obrigada a cuspir tudo para fora numa bala. O meu especialista não acredita, diz que, a ser verdade, já tinha morrido, que ninguém sobrevive sem dormir nem comer durante tanto tempo, mas eu estou aqui, não estou? O especialista diz que a minha doença é muscular e degenerativa, embora assuma que não a consegue identificar. Não preencho os requisitos para fazer um diagnóstico exacto e é coisa que o deixa desconcertado.

O que eu sei é que esta doença é o que me mantém viva. Chamo-lhe doença, mas podia dar-lhe outro nome, por exemplo, persistência. Há qualquer coisa dentro de mim que me mantém activa. Entrei em grande velocidade, não consigo desacelerar e a culpa é desta coisa que vive dentro de mim, de certeza que é esta coisa dentro de mim a que chamo doença, mas que melhor seria chamar-lhe persistência, acho que é por isso que o especialista não consegue ajudar-me.

Procura uma patologia e eu até sem o diagnóstico consigo antecipar a cura, a minha cura tem um nome — FALÊNCIA. Embora o corpo teime em prosperar mesmo sem investimento, continua a dar lucro e não é por minha vontade, acreditem, simplesmente não consegue desistir, não consegue parar. Quanto tempo dura uma geração?

Há meses que não sei nada do meu especialista, mudaram-no para outro laboratório. Achei que fosse uma ordem superior. Era tão incompetente que o melhor seria transferi-lo para uma área de menor responsabilidade. Ouvi dizer que se tornou constrangedor vê-lo às voltas no laboratório, ficava naquilo todos os dias durante horas. Ouvi dizer que era um especialista muito esforçado no início mas que, depois, acabou por se render à sua própria ignorância.

Muitas vezes o viram adormecer enquanto consultava a pouca informação disponível sobre o meu caso, normalmente depois de uma refeição, o que eu acho perfeitamente compreensível. Quando o sangue se concentrava na digestão, o especialista ferrava-se a dormir, e mal levantava as pestanas desatava a mastigar o que tinha deixado em suspenso, num exercício de mandíbulas trituradoras francamente assustador — comer e desligar —, tudo o que eu não conseguia.

Só depois é que me disseram que tinha sido um pedido dele, o especialista pediu transferência para outro laboratório porque investigar o meu problema, o meu caso, não o fazia sentir-se especial.

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