Sofro de muitos males, inclusivé de anorexia financeira

Algumas ideias práticas a favor da literacia financeira das crianças e adolescentes

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"É fundamental prepararmos as nossas filhas, e netas, para que consigam agir de forma diferente" @designer.sandraf
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Querida Ana,

Para mal dos meus pecados tenho imensa dificuldade em falar de dinheiro, e é provavelmente por isso que sofres do mesmo mal. Muitas de nós fomos educadas com a ideia de que pôr um preço às coisas, pior ainda, ao nosso trabalho (que confundimos com pôr um preço a nós mesmas), não fica bem a uma senhora.

O resultado é que sobretudo as mulheres tendem a retrair-se quando se trata de pedir um aumento de ordenado, a ficar caladas quando o colega passa a ganhar mais e são esquecidas, associando esta “luta” a traços de personalidade mais agressivos e masculinos que podem macular a sua feminilidade.

Como se percebe, o resultado é desastroso quando se comparam vencimentos na mesma empresa, pelas mesmas funções, ou se constata a disparidade de rendimentos entre homens e mulheres.

Ou seja, o problema está em grande parte dentro de nós, e é por isso fundamental prepararmos as nossas filhas, e netas, para que consigam agir de forma diferente. O verso desta medalha não é tornarem-se adoradoras do vil metal, pondo um preço a tudo, mas antes serem capazes de lidar com o dinheiro sem preconceitos, de uma forma prática e descomplexada, sem vergonha de cobrarem pelo seu esforço aquilo que ele vale de facto.

E, simultaneamente, tornarem-se mais autónomas e menos ansiosas quando, daqui a uns anos, receberem um telefonema de um gerente de conta de alguém a procurar vender-lhes qualquer coisa, ou uma carta da Autoridade Tributária.

Infelizmente parece que não estamos no bom caminho. Um inquérito recente feito no Reino Unido por uma organização chamada MoneyHelper revelou que menos de metade dos três mil pais inquiridos fala abertamente aos filhos de dinheiro. O que significa que estes miúdos estão a perder a oportunidade de construir uma boa relação com as suas próprias finanças no futuro, dizem os autores do estudo. Muitos não o fazem porque querem proteger os filhos das preocupações financeiras que vivem, muitos outros porque eles próprios se sentem muito inseguros nesta matéria.

Mas, Ana, ao contrário do que poderias pensar, a diferença entre os que fogem ao assunto e aqueles que falam abertamente sobre ele não está no poder económico de uns e de outros — não foi encontrada diferença estatística entre os pais com um orçamento familiar maior e aqueles que têm menos dinheiro.

Quanto à idade em que estas conversas são mais frequentes, o estudo revelou que entre aqueles que abordam estes assuntos com os filhos, 40% começou quando ainda eram pequeninos, mas 54% só o faz a partir dos 11 anos, o que os especialistas consideram ser tarde, já que as crianças estão preparadas para estes assuntos a partir dos 7 anos.

Em Portugal esta literacia financeira, nomeadamente a literacia financeira digital, é ainda mais urgente porque o último relatório da OCDE revelou que a nossa é muito baixa o que, além do mais, nos torna alvos perfeitos de todos os esquemas e fraudes. Por isso, vamos lá acelerar estas competências, até porque nada impede de as aprender em simultâneo com os nossos filhos e netos.


Querida Mãe,

Como sabe, sofro de todos esses males e ainda de anorexia financeira, um termo que me orgulho de ter cunhado para designar as pessoas que sentem uma aflição enorme em gastar dinheiro.

Tem vantagens, claro, porque assim não compro muitas coisas de que não preciso, mas, significa que também chego a casa sem trazer algumas de que precisava mesmo! Percebi que era um assunto sobre o qual precisava de me abrir com as minhas filhas porque a ansiedade era tanta que dava por mim a “cobrar-lhes” o que lhes oferecia: a comentar que tinha sido muito caro, a verbalizar que não devia ter comprado, que era preciso ter muito cuidado para não estragar, etc.. Agora obriguei-me a ser muito firme comigo mesma — se decidir comprar alguma coisa, está feito, e tento não ficar a ruminar sobre o tema.

Mas, mãe, é difícil encontrar um equilíbrio entre não querermos contagiar os nossos filhos com a preocupação que sentimos quando vemos acumularem-se as contas para pagar e o desejo de que dêem valor ao dinheiro e não pensem que cresce nas árvores. Mas tem razão, a literacia financeira não pode ficar esquecida no meio deste impasse, até porque sei que é a minha falta dela (inclusive sobre impostos, recibos verdes, descontos, etc.), que em grande parte me deixa tão desconfortável perante estes assuntos.

Quanto à luta por retribuições justas, concordo em absoluto, e temos muito caminho para fazer numa sociedade que, estranhamente, paga mal a profissões que supostamente mais valoriza, como na Saúde e na Educação, como se a mensagem fosse qualquer coisa como “se o fazem por dinheiro então não é uma verdadeira vocação”. Como se sujasse a pureza da sua dádiva ou do seu talento.

E para isso temos de começar por dar o exemplo aos nossos filhos, mostrando-lhes como perante uma proposta de trabalho alguém não se está a “armar em bom” ao pedir um valor que corresponda ao tempo e ao esforço que a tarefa implica, que não está a ser “convencido” quando pede um aumento de ordenado. Explicar-lhes, ainda, que a decisão de “oferecerem” o seu trabalho é obviamente uma opção, mas que lhes cabe só a eles tomar, e não pode ser imposta por terceiros, mesmo quando alegam que é por uma boa causa ou, como tantas vezes acontece, que até lhes estão a fazer um favor, muitas vezes, com a desculpa cretina, de que estão a contribuir para lhes “abrir outras portas”.

Mas, mãe, vou deixar-lhe aqui algumas ideias práticas a favor da literacia financeira das crianças e adolescentes, que fui roubar ao site da MoneyHelper que referiu:

  1. Quando vamos às compras, devemos traduzir por palavras o raciocínio inerente às nossas decisões, do estilo “Ora vamos lá ver quanto é que custam estes cereais que tu queres, e quanto custam os da outra marca — porque será que o preço é diferente, esta embalagem tem mais quantidade?”, deixando-os entrar na discussão.
  2. Tornar o dinheiro visível, num tempo em que ele está escondido dentro de cartões de crédito ou no próprio telefone. Para isso sugerem duas técnicas: a primeira é mostrar-lhes o saldo da nossa conta antes da compra e depois da compra; a segunda, é o velho porquinho mealheiro ou frasco de moedas — quando lhes “adiantar” a compra com o cartão, depois em casa faça-o retirar esse valor para lho entregar, para que tome consciência do gasto feito.
  3. Poupem com um objectivo. Peça-lhe para desenhar o objecto pretendido (bicicleta, jogo de computador, patins, campo de férias), e depois ajude-o a ir criando uma tabela de progressão da poupança até chegar ao valor necessário. Simultaneamente converse com ele sobre a forma de lá chegar mais depressa — em que é que podem poupar (apagar as luzes, deixar de comprar), em que é que pode trabalhar para receber mais (tarefas reais, sem facilitismos, e à medida que crescerem para terceiros, como babysitting, passear o cão do vizinho, etc.). Depois celebrem o grande dia.

Última recomendação: leiam O meu livro de Finanças, de João César das Neves, que nos tem ajudado muito lá em casa.

Beijinhos e obrigada por ter aberto este tema!


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

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