Da poesia negra ao pan-africanismo de Argel: Cabral, cultura e libertação

Em vez de olhar para a cultura em termos de raça, Cabral fomentou uma interpretação radical da cultura enquanto expressão do povo, enraizada nas relações sociais, que tornou possível a luta política.

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O saxofonista de jazz Archie Shepp no Primeiro Festival Cultural Pan-Africano, em Argel, em 1969, onde se desenvolveu a ideia de africanidade em torno não da raça, mas da experiência histórica comum do colonialismo e da luta anticolonial ELEONORE BAKHTADZE/Getty Images
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Amílcar Cabral é um dos mais conhecidos pensadores e atores políticos do anticolonialismo africano, a par de figuras como Frantz Fanon e Kwame Nkrumah. O seu pensamento — desenvolvido num conjunto de ensaios, discursos, relatórios e artigos — constitui uma crítica radical do colonialismo e do imperialismo e promove reflexões e análises teóricas das lutas de libertação nacional contra o domínio colonial. Entre muitos outros temas, Cabral sublinhou a importância de se compreender a questão da cultura. O caráter original do pensamento de Cabral acerca da cultura pode ser compreendido se tivermos em conta as suas ideias relativamente à tradição da negritude no contexto dos debates ocorridos em África e no resto do mundo entre as décadas de 1950 e 1970.

Um dos mais célebres discursos de Cabral é o que proferiu na Conferência Tricontinental de Solidariedade dos Povos de África, Ásia e América Latina, que teve lugar em Havana, em janeiro de 1966, o qual ficou conhecido como “A Arma da Teoria”. No mesmo ano, uns meses mais tarde, houve outro encontro importante: o Primeiro Festival Mundial das Artes Negras, em Dacar, em abril de 1966. Estes dois acontecimentos, em Havana e em Dacar, traduziam posições políticas contrastantes. Tendo corrido no mesmo ano, constituem expressões concretas de duas correntes de pensamento e de práticas anticoloniais cada vez mais divergentes, ambas remontando à Conferência Asiático-Africana de Bandung, Indonésia, em abril de 1955.

A primeira corrente de pensamento e de práticas procurou consolidar e alargar a solidariedade institucional entre os países africanos e asiáticos através da Conferência de Solidariedade dos Povos Afro-Asiáticos, que teve lugar no Cairo, em 1957, e da criação da Organização de Solidariedade dos Povos Afro-Asiáticos (OSPAA). A partir de 1961, Cuba obteve o estatuto de observador na OSPAA, e as discussões para associar a OSPAA aos movimentos da América Latina conduziu à decisão, tomada na Quarta Conferência de Solidariedade da OSPAA, realizada no Gana, em 1965, de organizar uma conferência entre estados africanos, asiáticos e latino-americanos, a realizar em Havana.

O posicionamento afro-asiático-latino-americano relativamente à solidariedade tornou-se cada vez mais radical. A conferência em Havana inaugurou uma postura militante e manifestamente anti-imperial, acolhendo delegações e movimentos de libertação dos três continentes, de acordo com critérios baseados na política e não tanto na raça ou na identidade cultural.

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Capas de uma das várias edições de A Arma da Teoria, livro póstumo de Amílcar Cabral

A segunda corrente de pensamento e de práticas anticoloniais, que se desenvolveu a partir de Bandung, centrava-se sobretudo na cultura. Foi no seguimento de Bandung que o escritor senegalês Alioune Diop e os seus colegas da Présence Africaine, uma revista sediada em Paris, conceberam a organização um congresso de artistas e escritores negros, o qual teve lugar em Paris, em 1956. Seguiu-se um segundo congresso em Roma, em 1959, ao longo do qual se desenvolveram planos para um terceiro evento, a realizar em África, o qual haveria de dar origem ao Festival de Dacar.

O Festival de Dacar teve como pano de fundo a visão de Léopold Senghor sobre a negritude. A cultura foi explicitamente enquadrada em termos de raça, mas evitou as questões de classe, o colonialismo e a libertação nacional.

Com Senghor e para além dele

Estes dois eventos são marcos na complexa configuração dos debates africanos em torno da cultura, da raça e da libertação no período da descolonização. Amílcar Cabral contribuiu de forma significativa para esses debates. As ideias de Cabral desenvolveram-se num contexto de colaboração com os seus companheiros militantes, que teve início em Lisboa, entre o final da década de 1940 e a década de 1950. As suas práticas de trabalho colaborativo e de debate prosseguiram no contexto do MAC (Movimento Anti-Colonialista), da FRAIN (Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas) e da CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas), organizações que estabeleciam a ligação formal entre os movimentos de libertação da Guiné-Bissau, de Angola e de Moçambique. Senghor e a negritude exerciam uma forte influência sobre Cabral e os seus companheiros. Contudo, estes iam além dos limites da negritude, desenvolvendo uma posição em vários aspetos significativamente distinta da de Senghor.

Cabral pertencia a uma geração de estudantes africanos que tinham viajado das suas respetivas colónias para Portugal no final da década de 1940 e na década de 1950 para estudarem na universidade, e que assumiriam papéis centrais nas lutas de libertação nacional. Este grupo, em que se incluíam Agostinho Neto, Lúcio Lara, Mário de Andrade, Alda Espírito Santo, Guilherme Espírito Santo, Marcelino dos Santos e Noémia de Sousa, envolveu-se numa profunda atividade coletiva de investigação e debate. Até ao momento, a sua educação formal focara-se apenas na língua, na cultura e na história portuguesas, razão pela qual tentaram aprender acerca da sua própria situação enquanto africanos, e acerca da situação mais genérica dos povos africanos, através de uma grande variedade de leituras e discussões. Os seus debates decorriam na Casa dos Estudantes do Império (CEI) e no Centro de Estudos Africanos, o seu grupo de estudo clandestino, de menor dimensão.

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Grupo de sócios da Casa dos Estudantes do Império nos anos 1960, em Lisboa Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso

Em 1948, Léopold Senghor publicara uma coletânea de poesia de autores africanos negros, Anthologie de la Nouvelle Poèsie Nègre et Malgache de Langue Française. Na altura, semelhante produção explícita da cultura negra era uma tomada de posição radical. Esta tradição, que afirmava orgulhosamente a existência e o significado da cultura negra africana, fascinava e inspirava Cabral e os seus colegas estudantes africanos. Por consequência, organizaram a sua própria antologia, Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa (1953). No ensaio introdutório, Mário Andrade descrevia a negritude como uma nova atitude e um novo movimento cultural, que advinha “de uma necessidade urgente e angustiada de redescobrir os valores tradicionais que foram destruídos, […] a necessidade de gritar a sua presença no mundo”, confirmando que “a poesia negra africana de expressão portuguesa se integra neste movimento”.

Ao longo do tempo, o empenho de Cabral e dos seus companheiros na questão da cultura africana e das relações entre cultura, colonialismo e libertação foi-se diferenciando cada vez mais da perspetiva de Senghor. O conceito de cultura africana defendido por Senghor baseava-se na ideia a-histórica de uma espiritualidade e de uma forma de ser especificamente negras. Cabral e os seus colegas de estudo acabariam por encarar essa perspetiva como expressão da alienação cultural em que vivia a elite dos “assimilados”.

Numa lição proferida na CEI em 1959, Agostinho Neto referiu-se à poesia inicial dos “assimilados”, apresentada no contexto da negritude, como a poesia do desenraizamento, uma poesia que “não chegava aos povos africanos que são o repositório das nossas culturas” e que “apenas tinha longínquas ligações com os verdadeiros problemas da realidade social”.

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Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa (1953)

Em vez de caracterizar a cultura em termos de raça, Cabral desenvolveu uma interpretação radical da cultura enquanto expressão do povo, enraizada nas relações sociais, que tornou possível a luta política e ao mesmo tempo foi moldada por ela. Contra todos os esforços dos colonizadores, argumentou Cabral, era a resistência das práticas culturais africanas que permitia que os povos africanos combatessem o domínio europeu.

Cabral fez ecoar a argumentação apresentada por Frantz Fanon no Segundo Congresso, em Roma, em 1959, segundo a qual as lutas de libertação eram em si mesmas um ato de cultura. No discurso que proferiu na CONCP em 1965, Cabral rejeitou a expressão imperialista “África Negra” e declarou que “não confundimos exploração […] com a cor de pele das pessoas”. Em 1972, preparou um artigo para a um seminário da UNESCO acerca de raça, identidade e dignidade. O texto de Cabral abordava a relação entre cultura e libertação nacional, afirmando: “Uma análise objetiva da realidade cultural nega a existência de culturas raciais ou continentais. […] a cultura – criação da sociedade […] é uma realidade social independente da vontade dos homens, da cor da pele ou da forma dos olhos.”

O primeiro festival cultural pan-africano

A ressonância destes debates e perspetivas encontra-se também noutro importante evento de celebração da cultura africana. Três anos depois dos encontros de Havana e Dacar, o Governo da Argélia acolheu o Primeiro Festival Cultural Pan-Africano, que durou duas semanas, entre 21 de julho e 1 de agosto de 1969. Os dois festivais culturais — o de Dacar em 1966 e o da Argélia em 1969 — davam corpo a visões políticas contrastantes relativamente a raça e a cultura. O primeiro traduzia o posicionamento de Senghor; o segundo, o posicionamento de Cabral.

O Festival de Dacar, concebido como performance da negritude, integrava-se no contexto da cultura negra. No âmbito deste discurso, as nações norte-africanas não eram consideradas negras. Havia algumas obras de arte norte-africanas incluídas na programação geral, mas os países norte-africanos tinham mero estatuto de observadores no festival e foram excluídos das competições oficiais, tal como o tinham sido nos congressos anteriores realizados em Roma e em Paris.

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Fotograma do documentário The Pan-African Festival of Algiers (1969), de William Klein
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Chegada da delegação da FRELIMO ao Festival de Argel, em 1969

Na Argélia, que fora anteriormente excluída dos fóruns de debate internacionais sobre cultura africana, explicitou-se e pôs-se em prática uma política de africanidade não racial e verdadeiramente continental. O Festival de Argel desenvolveu a ideia de africanidade em torno não da raça, mas da experiência histórica comum do colonialismo e da luta anticolonial. Participaram no evento delegações de todo o continente, incluindo, tal como em Havana, várias delegações de movimentos de libertação nacional: do PAIGC, do MPLA, da Frelimo, bem como do ANC, da SWAPO, da ZAPU e da Frolinat.

Em Argel, em 1969, os movimentos de libertação das colónias portuguesas, que se apresentaram conjuntamente sob representação da CONCP, definiram a sua interpretação radical da cultura por relação com a libertação, bem como a centralidade da cultura para os futuros pan-africanos. Estes movimentos descreveram a sua luta como um “violento confronto provocado pela contradição entre a afirmação cultural nacional apresentada pelas nossas organizações e a alienação assimilacionista imposta pelas baionetas coloniais”, explicando ainda que “é precisamente no fogo da ação armada, por entre as emboscadas montadas contra o inimigo, nos ataques aos quartéis ou sob uma chuva de bombas, que se revelam os traços da fisionomia cultural dos nossos povos. Porque não deixa na sombra nenhum dos aspetos que fazem a vida comunitária das pessoas em situações de combate, a luta armada pela libertação nacional surge como um ato cultural por excelência”.


Ler mais

Samuel D. Anderson, 2016, “‘Negritude is Dead’: Performing the African Revolution at the First Pan-African Cultural Festival (Algiers, 1969)”, in David Murphy (ed.), The First Word Festival of Negro Arts, Dakar 1966: Contexts and Legacies. Liverpool: Liverpool University Press.

Jeffrey James Byrne, 2016. Mecca of Revolution: Algeria, Decolonization, and the Third World Order. Nova Iorque: Oxford University Press.

Branwen Gruffydd Jones, 2020, “Race, Culture and Liberation: African Anticolonial Thought and Practice in the Time of Decolonisation”, The International History Review 42 (6):1238-1256.


Branwen Gruffydd Jones é professora de Relações Internacionais da Universidade de Cardiff, Reino Unido.

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