O que fica depois do fim da pandemia?

Foram mais de três anos de pandemia de covid-19 que deixaram marcas profundas e irreversíveis, algumas das quais só poderão ser compreendidas na sua plenitude daqui a alguns anos.

Foto
Vacina contra a covid-19 com tecnologia mRNA Athit Perawongmetha/Reuters
Ouça este artigo
--:--
--:--

A 5 de maio de 2023, o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou que a covid-19 “deixou de constituir uma emergência de saúde pública de preocupação internacional”, acrescentando: “Chegou o momento de os países passarem de um estado de emergência para uma gestão da covid-19 a par da de outras doenças infecciosas”. Embora as palavras de Ghebreyesus tenham já sido interpretadas de diferentes formas, elas constituíram, de facto, uma declaração do fim da pandemia que mudou as nossas vidas para sempre.

Foram mais de três anos que deixaram marcas profundas e irreversíveis, algumas das quais só poderão ser compreendidas na sua plenitude daqui a alguns anos. Na escola, criaram-se novas estratégias de ensino à distância e promoveu-se o acesso a novas ferramentas informáticas, mas agravaram-se ainda mais as desigualdades entre aqueles que a elas tiveram condições de aceder e os que não dispunham das condições mais básicas para o fazer de forma adequada.

No mundo laboral, o teletrabalho tornou-se uma realidade para milhões de pessoas, com os eventuais benefícios que isso acarreta, mas também com o isolamento social que impõe. As redes sociais assumiram um papel ainda mais presente na vida de todos os dias, o que pode significar um maior acesso à informação, mas significa também uma maior exposição a falsidades, pseudociência e populismos de toda a espécie.

De um ponto de vista político-social, a expetativa inicialmente criada de que a pandemia serviria para criar um novo paradigma de convivência mais justa e solidária rapidamente se gorou, sendo substituída por um individualismo crescente, a que não são alheias as políticas de gestão da pandemia levadas a cabo por governos como os dos Estados Unidos ou do Brasil de então, mas também a incapacidade ou falta de vontade dos países mais ricos fazerem chegar as vacinas a todos aqueles que delas necessitavam.

Na verdade, para cada legado da pandemia que se possa considerar positivo, não é difícil encontrar um reverso nefasto da medalha. Para todos, menos para um: o desenvolvimento científico que a covid-19 permitiu e acelerou, e que passou a constituir património do conhecimento global da humanidade.

Quando nos debruçamos sobre as conquistas científicas trazidas pela pandemia de covid-19, é inevitável pensarmos de imediato nas vacinas e, em concreto, nas vacinas de mRNA, que tantas vidas salvaram ao longo destes três anos. Uma das questões mais vezes colocadas a este respeito, quer por quem as tentou pôr em causa, quer por quem genuinamente as procurava compreender, foi a de como foi possível desenvolver estas vacinas em tão pouco tempo. A pergunta é legítima, e a desconfiança na celeridade do processo seria perfeitamente compreensível se a investigação nesta área se tivesse iniciado quando a pandemia surgiu. Só que não, muito pelo contrário.

A investigação acerca da molécula de mRNA e do seu potencial terapêutico iniciou-se há várias décadas, e foi sobre esse corpo de conhecimento que os cientistas trabalharam para criar estas vacinas, com resultados que ultrapassaram as expetativas mais otimistas.

Na verdade, as vacinas de mRNA são porventura a intervenção médica alguma vez criada cuja validação no mundo real aconteceu de forma mais ampla e no mais curto espaço de tempo. Tal validação abre portas a novas descobertas, cujo impacto é difícil de prever. Neste momento, há já laboratórios a trabalhar no desenvolvimento de vacinas de mRNA contra doenças infecciosas para as quais estas não existem ou cuja eficácia pode ser melhorada, como a malária, raiva, ébola, HIV/sida ou gripe, mas também contra o cancro ou doenças ligadas ao envelhecimento.

Além disso, os avanços científicos acelerados pela covid-19 não se cingem às vacinas, e incluem o desenvolvimento de novas terapias, incluindo novas moléculas antivirais e anticorpos monoclonais, cujo potencial impacto no combate a outras doenças é também incomensurável. São legados que ficam, porque o conhecimento, uma vez adquirido, pode ser enriquecido, ajustado ou complementado por descobertas posteriores, mas nunca mais desaparece.

No entanto, e chegados a este momento, pergunta-se com frequência se estamos mais bem preparados para a próxima pandemia. A minha resposta é sim. Claro que sim! Quer isto dizer que, quando ela acontecer, saberemos lidar com ela de forma perfeita? É evidente que não.

Os governos vão certamente tomar decisões controversas; os populistas e os movimentos anticiência vão encontrar terreno para o exercício da desinformação de que fazem modo de vida; os mais vulneráveis vão inevitavelmente sofrer; e as desigualdades sociais vão, muito provavelmente, agravar-se ainda mais. Mas as comunidades médica e científica estarão, por certo, mais bem preparadas para encontrar as ferramentas mais eficazes para combater a doença e as suas consequências, minorando, na medida do possível, esses impactos negativos. Assim todos saibam compreender a importância da investigação e da ciência para o bem-estar de todos nós.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar