Plasencia: portas, mistérios e gambozinos

A leitora Fernanda Gamito partiu à descoberta da cidade nas margens do rio Jerte e promete voltar para desvendar mais mistérios.

Foto
Plasencia Fernanda Gamito
Ouça este artigo
--:--
--:--

Sete portas, dois postigos e um portal para nenhures (a que voltaremos adiante) dão acesso à cidade monumental de Plasencia e por quase todos se chega directamente ao centro vital do casco histórico, a Plaza Mayor.

Só por instantes se duvida se tantas aberturas nas muralhas medievais serviram o propósito de confundir o inimigo ou, pelo contrário, atrair vecinos e visitantes. É domingo, quase uma e meia da tarde, quando entramos pela Puerta Berrozana. A meio da Calle Los Quesos, o crescendo de vozes alegres diz-nos que chegaremos à Plaza Mayor em poucos passos. Cá estão os vecinos e visitantes, velhos, novos, em cadeiras de rodas e triciclos, enchendo as terrazas ensolaradas, em conversas soltas e intermináveis à volta das cañas.

Num passado já distante, nem sempre a convivência pacífica terá sido fácil. Afonso VIII de Castela fundou esta cidade nas margens verdejantes do rio Jerte em 1186, a pedido da esposa, que gostou das vistas, sob o lema Ut placeat Deo et hominibus (para prazer de Deus e dos homens), do qual deriva o seu nome, Plasencia. Isto, claro, é o que rezam as crónicas, pois sabe-se que já aqui existiam povoações desde tempos pré-históricos.

Foi então só a partir do século XII que ricos e influentes começaram a erguer palácios e edifícios religiosos, em torno de sete praças e sete fontes, o número preferido da aritmologia bíblica, criando a cidade monumental que podemos ver até hoje. Nesse tempo, o lugar já contava com uma próspera comunidade sefardita que despertou, ciclicamente, ondas de inveja às gentes cristãs, até meados do século XV, altura em que estes judeus foram expulsos de vez do centro da cidade, as suas casas e bens confiscados.

Foto
Palácio Episcopal

Muros e áreas mais fechadas no traçado urbano medieval, assim como a história de alguns monumentos, são marcas profundas de violências, preconceitos, ambições e vaidades que o passar dos séculos não apagou do granito. No chão da última sinagoga, construiu-se um palácio renascentista e até a velha catedral românica foi parcialmente demolida, para se construir outra que melhor ostentasse os gostos e as novas riquezas castelhanas, depois da “descoberta” das Américas. Parte da “velha” catedral resistiu e permanece colada à “nova” catedral gótica: a Catedral de Plasencia, afinal, são duas.

Mas a cidade do Jerte não é um monumento só de pedra; fervilha de vida. Todas as calles e rincones são habitados. Na manhã seguinte, há um corrupio de gente no entra-e-sai do comércio e serviços. Os produtos extremeños estão em todas as montras e restaurantes e não são só para turistas. De repente, saltam-nos ao caminho os gamucinos... e só se revela o mistério quando se abre a caixa ameaçadora: o mítico animal que assusta criancinhas transformou-se nestas paragens em bolinhos de vários sabores.

A compasso de meia hora, o relógio do Palácio Municipal, que se destaca na Plaza Mayor, vai marcando o ritmo quotidiano. Vê-se alguém empoleirado na torre, a tocar o sino... é o avô Mayorga, um autómato do século XVI que é um dos símbolos da cidade.

Pelo meio-dia, a luz inunda inesperados pátios e jardins interiores em edifícios históricos. Numa esquina, sons de água e pássaros chamam-nos ao passar a porta do Palácio Episcopal. Lá dentro, descobre-se mais um claustro renascentista de dois andares, com laranjeiras, limoeiros e cisternas, onde a paz reina. “Solo se puede visitar el patio” e ainda bem. Não queremos saber o que se esconde atrás das grossas paredes, sejam segredos sombrios ou gambozinos...

Outros mistérios ficam por desvendar, como o do conjunto escultórico contemporâneo na Plaza de Ansano, um homem ajoelhado com a cabeça e braços semi-enterrados, enquanto outro o observa de mãos nos bolsos... Ou os dois degraus para nenhures numa parede onde talvez tenha existido uma porta, perto da Plaza de San Martin, quem sabe um portal escondido, à vista de toda a gente, para o passado atribulado de Plasencia.

Voltaremos em breve para caçar mais gambozinos.

Fernanda Gamito

Sugerir correcção
Comentar