Yuval Harari em Lisboa: a inteligência artificial pode ser “o T-rex” que “destruirá a democracia”

Sem regulação da inteligência artificial, “as hipóteses de as democracias sobreviverem são muito baixas”, avisou o historiador israelita.

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Yuval Noah Harari em Lisboa Daniel Rocha
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Não, a inteligência artificial (IA) não é uma tecnologia como as outras que surgiram ao longo da história e que também foram recebidas com receios. Os jornais, a rádio e a televisão não conseguem gerar notícias falsas sem que um humano as escreva e a “bomba atómica não pode decidir que cidade destruir”, mas a IA “é a primeira tecnologia que consegue tomar decisões por si própria”. Por isso, é urgente que os governos a regulem, avisou o historiador israelita Yuval Noah Harari esta sexta-feira, na Estufa Fria, em Lisboa.

Na conferência que deu, Humanidade, não é assim tão simples, organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o professor de História do Mundo na Universidade Hebraica de Jerusalém começou por lembrar uma das suas ideias recorrentes. “Agora, somos quase como Deus, em termos de poderes de criação e destruição. Temos o poder de criar nova vida, mas também de a destruir”, defendeu. O ser humano enfrenta dois colapsos em potência: o climático e o tecnológico.

Foi neste segundo que se focou o pensador, que tem criticado o desenvolvimento acelerado da IA. Com uma pitada de esperança: “Se cooperarmos, conseguiremos lidar com as alterações climáticas e com a IA.”

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O desafio é enorme até porque “ainda não vimos nada” em termos das verdadeiras capacidades da IA. Recorreu a uma imagem: se a “evolução da vida na Terra levou 4000 milhões de anos”, a IA levará “poucas décadas ou anos”, muito menos tempo do que muitos, incluindo ele, previam. Se o ChatGPT equivale às “amebas do mundo da IA, o que parecerá o T-rex?”, questionou.

“A IA está a desenvolver-se de forma demasiado rápida. É obrigação dos governos desacelerá-la”, pediu. Parar ou regular o desenvolvimento desta tecnologia “não vai acontecer”, mas vê um caminho. “O que espero dos governos é regular a implementação da IA nas sociedades”, impondo regras de segurança à semelhança do que acontece, por exemplo, na indústria automóvel.

Yuval Harari avançou mesmo com uma proposta: “Ilegalizar a contrafacção de humanos”, tal como acontece com o dinheiro. Se uma lei como estas fosse aprovada, a inteligência artificial não poderia fazer-se passar por um humano, teria de avisar o utilizador que estava a “conversar” com uma máquina. Desta forma, reduzir-se-iam os riscos de manipulação em massa. É preciso leis como esta porque “a tecnologia não vai regular-se a si mesma”. No entanto, “em vez de estarmos unidos” perante estas ameaças “estamos cada vez mais divididos”.

O assunto é muito sério, insistiu. A inteligência artificial pode “destruir a conversa” comum entre humanos, que é essencial para a democracia. “A conversa é feita com linguagem” e tem como base “a confiança”. Sem regulação, a IA vai minar esta confiança: como poderemos saber se estamos a ter uma discussão – sobre o político que queremos eleger, por exemplo – com uma máquina ou com um humano? “A democracia é uma conversa entre pessoas”, não entre bots e pessoas, resumiu.

Já temos uma amostra desta corrosão democrática na “polarização” promovida pelos algoritmos das redes sociais, que espalham notícias falsas. Ora, isto é “inteligência artificial muito primitiva”. Ela é já muito mais sofisticada: pode “criar a história falsa ou o vídeo falso por si só”. Conclui: “Se não regularmos isto, as hipóteses de as democracias sobreviverem são muito baixas.”

Sapiens em stress

O autor de Sapiens: História Breve da Humanidade (2013) receia os efeitos da IA e de um mundo cada vez mais digital nas novas gerações. “Não temos ideia do que será o resultado disto em termos de educação em dez ou 20 anos.”

Não é contra a tecnologia – conheceu o marido online e agradece à Internet ter facilitado a vida de um homossexual numa sociedade conservadora como aquela em que cresceu. Mas a Internet permitiu-lhe conhecer alguém de carne e osso, não um avatar, não meros pixéis num ecrã. “Somos seres em corpos”, mas as novas gerações poderão conhecer uma sociedade desmaterializada, em que podemos ter a tentação de viver fora do corpo, quase 100% online, no “metaverso”.

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Acredita que esta revolução tecnológica permanente gera stress e que “estamos próximos do momento em que não conseguimos aguentar mais”. É preciso “desacelerar”, sob pena de “quebrarmos psicologicamente”.

O que dá optimismo a Yuval Noah Harari? “Os humanos ainda têm uma enorme capacidade de mudança. Temos imenso potencial que nem conhecemos. A evolução da IA pode fazer com que percamos muito do nosso potencial sem que sequer saibamos que o perdemos. Não estamos nem perto do nosso potencial completo. Se investíssemos cada euro e minuto que investimos em IA nas nossas mentes e consciências, estaríamos bem. Mas a estrutura de incentivos na nossa sociedade e economia levam-nos na direcção errada.”

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