“Incorporar experiências estrangeiras” no combate aos fogos é “uma deriva perigosa”

António Nunes, presidente da Liga de Bombeiros Portugueses, critica a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais e acredita que o SIRESP é hoje “uma rede confiável”.

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António Nunes acredita que o SIRESP é hoje “uma rede confiável” Sónia Sapage, Susana Madureira Martins (Renascença)
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Num ano em que, de acordo com o Governo, o risco de incêndio aumentou 40% só até Março, António Nunes, presidente da Liga Portuguesa dos Bombeiros (LBP), assume que se espera "um Verão exigente, mas os bombeiros estão preparados" para ele. Em entrevista ao PÚBLICO e à Rádio Renascença, que pode ser ouvida nesta quinta-feira a partir das 23h, o antigo inspector-geral da ASAE refere o "excelente diálogo" que hoje existe entre a LBP e o Ministério da Administração Interna e o "bom diálogo” com a ANEPC [Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil], mas lamenta que "as consequências do diálogo" não sejam as que os bombeiros gostariam, "designadamente na dotação dos meios". António Nunes deixa ainda um recado à Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF): as soluções usadas nos EUA, Austrália, Chile ou Canadá não servem para Portugal.

O Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais começou mais uma vez com menos meios aéreos do que no ano passado. Apesar de as previsões apontarem para um Verão mais exigente. Este é o novo normal?
O dispositivo de combate aos incêndios florestais tem tido um número de meios aéreos que ronda os 60. Já no ano passado, a LBP tinha dito que este ano dificilmente iríamos ter o número de meios aéreos que estavam programados face a duas situações. A primeira tem que ver com o facto de ter havido vários incêndios em países da Europa Central. Normalmente os helicópteros que vinham para Portugal, para Espanha, para o Sul de França vinham da Europa Central. Ora, havendo esses incêndios, os meios foram desviados. Por outro lado, havendo escassez, os preços iriam subir. Portanto, os concursos públicos, ao serem feitos a valores de 2020/2022 ou de anos anteriores, naturalmente que iriam ficar desertos. E assim aconteceu. Para nós não é uma surpresa. E não é culpa do Estado, não é culpa do Governo, é culpa do mercado.

E se tivesse sido feito mais cedo. Não tornaria a situação um bocadinho mais acautelada?
Pelo menos teríamos tido o cuidado de perceber com alguma antecedência, e não no dia 15, que nos faltavam meios aéreos e que provavelmente não os vamos ter. Por isso é que nós, desde a primeira hora, temos dito que tem de haver um plano B. Ou seja, se eu tenho uma informação a dizer que provavelmente vamos ter um Verão mais rigoroso e que teremos dias em que as condições atmosféricas e meteorológicas são muito adversas para o estado da floresta, então temos de ter uma alternativa. Para nós, essa alternativa é aumentar a capacidade dos meios terrestres com a finalidade de acorrer de uma forma mais musculada aos incêndios iniciais e resolvê-los na primeira hora.

Há dificuldade de recrutamento de bombeiros?
Há dificuldade de recrutamento de mão-de-obra, mas isso é universal. É preciso percebermos que estamos num país, e ainda bem, que está próximo do pleno emprego. A dificuldade de obtenção de mão-de-obra não é nos bombeiros, é no mercado em geral.

A dificuldade é profissionalizá-los?
Sim, por duas ordens de razões: primeiro, porque a profissão é de risco e eu relembro que desde 1980 até Dezembro de 2022 morreram 239 bombeiros em serviço. Eu não sei se há muitas forças de segurança ou de socorro que tenham esse registo e nós temos, infelizmente. Segundo, aquilo que é oferecido aos bombeiros voluntários é praticamente inaceitável, tendo em conta a formação e a disponibilidade que têm de ter. É preciso olhar com alguma atenção para os incentivos ao voluntariado. Não podem ser incentivos que estão muito bem no papel, mas que não correspondem à capacidade de convencer os jovens. Não se paga nos transportes públicos? Pois não, mas há cidades do Interior que não têm transportes públicos. Há muita coisa que está escrita, e bem, nos documentos, mas que não tem uma aplicação prática.

O que podia fazer a diferença?
Um estatuto do voluntariado mais adequado às necessidades. Por exemplo, isentar de IRS todas as retribuições que o bombeiro voluntário possa receber como compensação por tempos perdidos. Tem de se ir por coisas imediatas. Já temos a isenção nas taxas moderadoras, por exemplo, mas para os jovens não é muito atractivo. Há uns anos atrás, a lei deu aos municípios a capacidade para apoiar os bombeiros, por exemplo, através da redução do IMI. Mas é preciso que eles estejam a viver no sítio onde prestam voluntariado e têm de ter casa própria.

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#MVR Matilde Fieschi - Entrevista Hora da Verdade a António Nunes (Liga Portuguesa dos Bombeiros) - 17 de Maio de 2023. MATILDE FIESCHI

O ano passado houve problemas com o SIRESP que foram visíveis e denunciados pelos bombeiros. É recorrente. Em 2023 o SIRESP não vai dar problemas como em 2022?
Nós temos de acreditar naquilo que são as afirmações de princípio e os investimentos que foram anunciados. Desde 2017, o SIRESP tem melhorado muito. Muitas vezes, a questão que se coloca é a da capacidade momentânea para as suas mobilizações. Houve alguns problemas, no ano passado, relacionados com a retirada de antenas [móveis] de pontos que eram estratégicos antes de algumas operações terem ficado completas. Muitas vezes, a informação não flui adequadamente.

Aprendeu-se com esses erros?
Eu acho que sim. E nós temos de dizer que o SIRESP é uma rede que, se for atempadamente deslocalizada para as situações de emergência, vai funcionar bem. E há sempre meios alternativos que podem ser utilizados, como a Rede Operacional de Bombeiros, que é uma rede de coordenação. O que é que pode faltar nos bombeiros que não falta nas forças de segurança das Forças Armadas? São especialistas em comunicações. Seria uma boa aposta se as Forças Armadas pudessem dar um bom apoio aos bombeiros ao nível de ajuda no terreno e acima de tudo de planeamento de redes.

Este ano não vamos ter comandantes a usar o telemóvel para comunicar no terreno?
Às vezes isso é um velho hábito que não se perde, tal como o de muitas vezes dizer pelo telemóvel aquilo que não se quer dizer via rádio. Mas o que nós sentimos é que há mais dificuldades nas comunicações terra-ar e de coordenação dos meios aéreos.

E porquê?
Por duas razões: porque a rede é pior, a banda usada tem muitas interferências; e porque muitos dos pilotos não são portugueses. Portanto, há mais problemas na interligação terra-ar do que propriamente na rede SIRESP. Eu diria que a rede SIRESP hoje, do nosso ponto de vista, é uma rede confiável.

O que é que mudou na vida dos bombeiros desde 2017?
Digamos que há dois aspectos. Apareceram muito mais actores no terreno e nós, LBP, somos absolutamente contra esse aspecto. Hoje, num teatro de operações, em vez de ter bombeiros, tenho bombeiros, sapadores florestais de três categorias distintas, Unidades de Emergência de Protecção e Socorro, força especial de protecção civil, Forças Armadas, tudo o que possa aparecer.

É gente a mais?
Pode não ser gente a mais, mas são entidades a mais porque isso é difícil de coordenar. Nós sabemos perfeitamente que em Portugal a cooperação e a coordenação são sempre difíceis. Nós somos defensores de que a criação de agências de combate só pode ser feita na perspectiva da complementaridade. Ou seja: o que compete aos bombeiros é fazer isto. E o que é que falta? Falta isto e isto. Então podemos completar com outras entidades — aqui entra a coordenação. Quando nós vemos no mesmo teatro de operações, na mesma frente de fogo, viaturas encarnadas, verdes e amarelas exactamente iguais, produzidas pelo mesmo fornecedor, alguma coisa está errada. É concorrência. Além disso, há hoje uma deriva perigosa de tentar incorporar em Portugal experiências estrangeiras, principalmente vindas dos Estados Unidos, do Canadá, do Chile e da Austrália. O nosso território, a nossa interligação e interface meio urbano-meio florestal não se coaduna com essas técnicas, na nossa opinião.

De onde é que vem essa deriva?
Vem de 2017. Eu numa zona como o distrito do Porto, se tiver um incêndio florestal com meia hora de duração, com uma velocidade de vento de 40 ou 50 Km/h, a minha probabilidade de uma ou duas habitações estar no caminho, é imediata. Nos Estados Unidos, posso ter duas horas ou 12 de queima de floresta e não surge casa nenhuma. Portanto, é preciso olharmos para isto com algum cuidado. Não podemos ter essa interpretação.

É uma interpretação que a AGIF tem...
Pois é. Até já disse ao presidente da AGIF, Tiago Oliveira, que por onde ele passou agora já eu passei há 30 anos e recomendei, nessa altura, que não se fizesse. É preciso adaptarmos a nossa técnica, a nossa capacidade de combate, àquilo que é a realidade de Portugal, que é diferente da realidade de França, ou da espanhola.

Para que tipo de Verão é que se preparam este ano?
Aquilo que nos disseram é que vai ser um Verão exigente, mas os bombeiros estão habituados a isso. Os bombeiros não se prepararam para este ano, estão preparados para responder a todas as emergências.

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