A boa educação tem prazo de validade?

Educar é exactamente aproveitar estes momentos para ensinar, porque colam muito melhor do que todas as aulas teóricas de Cidadania (também importantes, claro).

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Querida Ana,

Estou a escrever-te no comboio, ainda ofegante porque ao ver um rapaz disparar escada acima para o tentar apanhar, decidi que não lhe podia ficar atrás. E aguentei o sprint, e aqui estou eu, embora veja daqui o miúdo fresco que nem uma alface enquanto eu estou com taquicardia, mas adiante que o que importa é a prova superada.

Interrompi esta carta por dez minutos.

Toda a minha atenção foi tomada por um grupo de estudantes de 12 ou 13 anos, confortavelmente sentados, indiferentes a uma grávida em pé no corredor, ainda por cima com um saco pesado na mão. É verdade que não estavam nos lugares assinalados como prioritários, que ficavam mais à frente numa carruagem apinhada de gente, mas fiquei logo nervosa, com os genes da tua avó-Granny a virem ao de cima.

Tentei controlar-me, esperei que a própria senhora pedisse para que um deles se levantasse, mas como não o fazia aproximei-me disposta a chamar-lhes a atenção (estavam tão entretidos que talvez nem tivessem reparado), mas foi nesse momento que vi levantar-se um senhor com um daqueles coletes luminosos, que estava com eles, mas de costas para mim: avisou-os de que saíam já naquela estação.

Era um monitor, um professor, não sei, tudo o que sei é que era um adulto acompanhado de adolescentes, que não sugeriu a nenhum dos seus “meninos” que desse o lugar a uma grávida. Que nem tão pouco lhes deu o exemplo, oferecendo o dele.

Educar é exactamente aproveitar estes momentos para ensinar, porque colam muito melhor do que todas as aulas teóricas de Cidadania (também importantes, claro).

Sentou-se, por fim, a grávida. E sentei-me eu, para continuar a escrever-te. Sabes o que me lembrou esta cena? Um debate sobre adolescentes onde estive há séculos, no Porto, com o professor Júlio Machado Vaz. Nesse encontro uma mãe perguntou-lhe, e não havia ponta de ironia na pergunta, “se ainda está na moda ensinar um filho a levantar-se para dar o lugar a uma velhinha nos transportes públicos”. O Machado Vaz respondeu lhe com uma interjeição bem à moda do Porto. Devia-a ter usado com este adulto de colete amarelo. E com todos os pais a quem ainda passe pela cabeça que a boa educação tem prazo de validade.

Ana, de repente preciso de confirmar: as tuas filhas sabem que têm de se levantar para dar o lugar a alguém mais frágil do que elas, não sabem? Será que, nós pais e avós, porque não estamos por vezes com eles nas situações do dia-a-dia nem damos pelo facto de não lhes termos ensinado estas coisas?


Querida Mãe,

A questão não é tanto se elas se levantariam (porque como no exemplo que a mãe presenciou, podiam nem reparar), mas o que me parece mesmo pertinente é saber se eu repararia na senhora e se aproveitava o momento para lhes chamar a atenção, e explicar-lhes como deviam agir.

É que por estes dias andamos tão ligados ao telemóvel, de cabeça baixa sobre o ecrã, e com tantas coisas na cabeça que provavelmente deixamos passar muitos destes momentos para lhes mostrar, pelo exemplo, como devemos estar atentos e agir em favor dos outros.

Também os monitores e os professores andam sobrecarregados, e acho sinceramente que o sistema educativo está tão obsoleto e com tantos remendos, que os educadores gastam todas as suas energias em burocracias e tarefas que talvez sejam desnecessárias. E, claro, que por isso muita coisa importante lhes pode passar, e haverá quem pense que "agora só me faltava também ter de ensinar o miúdo a ser bem-educado... Isso é trabalho dos pais".

O problema é que esta postura desvaloriza a própria profissão, desvaloriza a influência gigante que os professores têm nos seus alunos. Ao contrário do que, por vezes, a sociedade os faz sentir, o exemplo dos professores conta muito para a construção dos seres humanos que têm à frente.

O respeito que lhes mostram, que mostram aos seus pares, a atenção que têm para com eles e para com as outras pessoas numa visita de estudo, a forma como cumprimentam os convidados que vão à escola fazer alguma actividade, tudo isto vai mostrando às crianças/adolescentes como se deve interagir num local de trabalho, como se deve interagir numa comunidade e no mundo. São estas soft skills, como agora se diz, que podem fazer a verdadeira diferença entre vários candidatos com o mesmo currículo. São competências essenciais.

Os pais têm, obviamente, um papel crucial e não se podem demitir dele, mas escola como um todo, a “cultura” da própria instituição, tem de estar tão disponível para colmatar uma lacuna de Matemática, como as lacunas na educação cívica. Aquela que passa muito mais nas interacções vivas, do que em qualquer sermão.

Mãe, não posso acabar esta carta sem lhe dar os parabéns pelo sprint para o comboio — o rapaz tinha as duas pernas, certo?

Beijos!


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

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