Isto muda tudo

Costa sabe que Marcelo não quer um governo com o apoio da direita populista – um cenário que seria ainda mais humilhante para o Presidente do que a tomada de posse da “geringonça” foi para Cavaco.

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A recente resposta pífia de Marcelo à manutenção de um ministro de Costa não corresponde apenas a uma brecha na relação entre os dois. Ela é um sintoma de uma crise freática do regime, que só agora começa a criar um clima político verdadeiramente irrespirável, mas à luz da qual é possível explicar a longa sobrevivência do costismo ao seu próprio vazio.

Há uma reconfiguração político-partidária sistémica que torna possível uma das premierships ao mesmo tempo mais frágeis e mais resilientes do regime – e que é independente da sageza tática de Costa. Em democracia, nunca um governo governou tão pouco durante tanto tempo. E o recurso de Marcelo à anciã hermenêutica do silêncio – arte que desconhece – revela uma impotência estrutural na democracia que não tem precedente, e que portanto nenhum presidente seria capaz de defrontar.

Passo a explicar. A condescendência de Marcelo com vários ministros significou sempre o paradoxal reconhecimento de que o Governo só cairia ou por implosão, ou pela própria mão do primeiro-ministro. Marcelo atuou – e continuará a atuar - como um professor que castiga severamente um aluno que sabe que é o melhor da turma. Em contrapartida, o desleixo de Costa faz lembrar o daqueles alunos que desistem por estarem fartos de tirar boas notas. No fim até pode chumbar à cadeira, mas para já Costa sente-se autorizado a instrumentalizar o Governo para efeitos de luta política interna ao PS.

Ao manter o ministro das infra-estruturas, Costa está a dizer a Marcelo que irá continuar a usar o executivo para a lenta terraplanagem do pedro-nunismo, comprando assim o tempo necessário para deixar cair um ministro daquela fação – antes ou depois de o arrastar para a torradeira da comissão de inquérito (juntamente com o próprio ex-ministro). Costa procura assim imunizar a sua linhagem preferencial no PS para mais tarde reclamar para si, e para o seu sucessor predileto, o legado mais austeritário e menos esquerdista de que há memória num governo de esquerda: o da redução da dívida a custo do Estado social. Legado mais fotogénico para esta Europa não há.

Mas passemos aos elementos estruturais. A afirmação da direita populista não compromete o regime apenas por afetar a regular alternância democrática; ela também subverte os quadros analíticos mais tradicionais. O Presidente não terá antecipado que isto libertaria o primeiro-ministro ao mesmo tempo que limita os poderes presidenciais. Marcelo, que nunca conquistou os cargos executivos a que se candidatou, pensou que tinha agora arranjado uma forma de governar by proxy. Enganou-se. E o engano é revelador de uma mudança estrutural que Costa não criou mas da qual tira o máximo proveito.

Em países com um pesado passado fascista, a possibilidade remota de um governo de base (mesmo que parcialmente) populista pode ironicamente promover, previamente, longas maratonas de governos moderados capazes de disfarçar a sua inércia e desordem atrás da cortina de fumo do mal menor. Portugal é exemplo disso. O intermezzo que vivemos, e que antecede a chegada ao poder do populismo, caracteriza-se, mais do que noutros países, por um longo e tardio compasso de poder do partido charneira. Esse intervalo histórico caiu no colo de Costa por acaso mas durante tempo suficiente para ele se habituar à sorte. No entretanto, há cinco coisas que o primeiro-ministro interiorizou a seu favor.

Primeiro, Costa sabe que Marcelo não quer um governo com o apoio da direita populista – um cenário que seria ainda mais humilhante para o Presidente do que a tomada de posse da "geringonça" foi para Cavaco.

Segundo, Costa sabe que uma "traquitana" encabeçada pelo PSD que exclua os populistas nunca durará muito tempo se amarrada apenas à muleta da sapientíssima IL. Sem o CDS no Parlamento, e sem a mínima probabilidade de uma maioria absoluta de Montenegro, o atual quadro político-partidário favorece a eternização do PS no poder, pelo simples facto deste conseguir fazer à esquerda e ao centro o que o PSD não consegue fazer ao centro-direita há quase 30 anos: uma maioria absoluta monopartidária.

Terceiro, como lembrou Magalhães e Silva, Sampaio admitiu renunciar à Presidência caso a dissolução parlamentar de 2004 não redundasse numa maioria alternativa capaz de formar governo. Marcelo é um Presidente muito diferente dos outros, é certo. Mas a ordem natural das coisas dita que uma "má dissolução" é a morte de qualquer Presidente. Costa sabe que Marcelo não quer ser o primeiro chefe de Estado da democracia a renunciar. E sabe-o porque foi ele que garantiu a não-renúncia do Presidente ao alcançar uma maioria absoluta que justificou, retroativamente, a decisão de dissolver.

Quarto, Costa também sabe que se o PS viesse a perder umas eleições antecipadas, muito dificilmente os socialistas (com ou sem ele) dariam a mão a um governo do PSD com um discurso tão polarizador e marcadamente "anti-socialista" – por muito que alguns socialistas já o tenham defendido. Mais facilmente imaginaríamos um PS a empurrar o PSD para o abismo de um governo com suporte parlamentar da direita populista, para depois induzir a sua autodestruição pela complexa mecânica interna de uma traquitana tão "federadora" como qualquer saco de gatos. Um governo assim constituído não duraria uma legislatura, e mobilizaria outra vez a esquerda. Em alternativa, um governo de direita com o apoio parlamentar do PS reavivaria o fantasma do bloco central que as franjas populistas tanto gostam de agitar.

Quinto: por tudo isto, Costa soube sempre que a ameaça de Marcelo era uma não-ameaça. Mas a certo ponto tornou-se problemática porque passou a justificar uma pseudo-presidencialização ao vivo do executivo que complicava a gestão do tempo político do primeiro-ministro, acelerando a sua responsabilização por políticas concretas quando o que Costa quer é prolongar ao máximo a lógica gestionária que a pandemia e a guerra lhe serviram de bandeja. Nos próximos episódios Marcelo tentará manter essa pressão. Mas em vão. Qualquer aluno de Ética ou Política sabe que a credibilidade de uma ameaça é o que a define.

Mais do que a pandemia ou a guerra, a austeridade mutilou a democracia. A crise instalou no Parlamento um populismo que só recuará por cisão interna e que, até lá, mina a capacidade da direita moderada constituir um governo sozinha ou inter pares. O desafio que se coloca ao Presidente é hercúleo: a não ser por fatores que lhe são externos, Marcelo vai ter de levar com Costa até ao fim, com ganhos de causa artificiais que não afetem a longa marcha do primeiro-ministro – e que serão provavelmente combinados entre os dois.

O ar pesado que o Presidente tentou disfarçar com um gelado significa que já percebeu o que lhe aconteceu: é o primeiro Presidente a ser confrontado com a possível subida ao poder de uma direita que o subconsciente coletivo dos portugueses identifica com a sua pior memória política. E isto muda tudo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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